Um ano
Faz hoje um ano que perdi a minha avó a poucos dias de fazer trinta anos.
Perdeu a consciência e foi levada para as urgências de um hospital público. O caos do SNS é tanto que, durante três dias, não conseguimos saber absolutamente nada sobre o seu estado de saúde. Ligámos, fomos lá, insistimos e persistimos e nada. Ninguém nos sabia dizer se já tinha feito exames, e quais, onde estava e o que se passava com ela. Falávamos em alta sem saber que ela jamais sairia daquele hospital.
Quando, finalmente, a fomos ver estava num corredor da urgência do hospital. Tinha tido um AVC grave sem quaisquer perspectivas de recuperação. Já não era ela naquela cama e já não sairia dali. Foi internada na medicina interna quando abriu uma vaga e foi ali que morreu.
Umas semanas depois dela morrer, recebi um inquérito de satisfação do hospital a perguntar se estávamos satisfeitos com o processo de alta (alta para a morgue?). Reclamei. Recebi um pedido de desculpas. Aceito mas não perdoo. Não consigo perdoar um sistema que não trata os idosos com dignidade. Que os descarta para corredores de urgências e que nem sequer se preocupa em informar os seus familiares do seu estado de saúde.
Mas, no final do dia, não é do péssimo serviço do SNS que me quero lembrar. Quero lembrar-me da avó que me dava dinheiro às escondidas e que dizia “não contes ao avô”, que me comprava chocolate branco (sempre branco) no minipreço, que me fazia limonada com suplementos para ver se eu crescia só mais um bocadinho (não resultou), da avó que me ensinou a nunca virar as costas ao mar, da avó que me dizia que se não comesse a sopa ia dizer ao meu avô e que, depois quando o meu avô chegava mentia a dizer que sim, que eu estava a comer a sopa toda (e era sempre mentira), da avó que me fazia cerelac enquanto eu via o batatoon ou o sítio do pica-pau amarelo ou as chiquititas, que me comprava sempre uma fartura na feira e reclamava que aquilo era só gordura, da avó que foi obrigada a dar à filha o nome da patroa à qual limpava a casa porque tinha de ser, da avó que não foi à escola porque começou cedo a trabalhar para ajudar os pais, da avó das férias no Algarve, da avó que guardava religiosamente os postais que lhe enviava das férias mesmo mal sabendo ler e que, mesmo não gostando de animais, muitos aturou no final da vida, da avó que me perguntava sempre se não me sentia sozinha a viver sozinha, que me comprou um cadeado para a porta de casa e que me perguntava sempre quando é que me ia ver outra vez. Até ao dia em que não houve próxima vez.