Diário de uma invasão à Ucrânia de Andrei Kurkov
A minha curiosidade em ler este livro surgiu depois de ter visto o documentário «20 dias em Mariupol» que ganhou, com todo o mérito, o óscar de melhor documentário nos óscares deste ano. O jornalista Mstyslav Chernov retrata a saga vivida pelos jornalistas da AP, os únicos que ficaram na cidade à medida que os russos se aproximaram. «Filmem isto!» pediam os médicos perante as crianças que não conseguiam salvar, perante uma maternidade bombardeada, perante cadáveres empilhados na cave. É duríssimo, mas extremamente necessário. E uma prova de que o bom jornalismo ainda existe.
Este livro de Andrei Kurkov é um diário sobre a guerra, escrito entre 3 de Janeiro de 2022 e 3 de Julho de 2023, de um escritor que decidiu permanecer na Ucrânia, depois de fugir de Kyiv para a Ucrânia ocidental.
Nota-se um esforço grande por parte de Andrei para relatar a guerra, mas também reforçar o sentimento de independência da Ucrânia e do espírito ucraniano. Andrei fala, por exemplo, da importância da produção de mel para a Ucrânia e da grande tradição de apicultores no país (alguns tentaram salvar as suas colmeias retirando-as das zonas ocupadas), dos poetas e escritores perseguidos pelos russos quando as suas cidades são ocupadas, do orgulho na cultura ucraniana.
Também fala muito de política e do papel da Europa nesta guerra:
É assustador escrever estas palavras mas vou escrevê-las de qualquer maneira: a Ucrânia irá tornar-se livre, independente e europeia ou deixará de existir de todo. Depois, irão escrever sobre ela nos livros de História da Europa e irão esconder o facto de que a destruição da Ucrânia apenas foi possível devido ao consentimento tácito da Europa e de todo o mundo civilizado.
Apesar da seriedade da situação, Andrei consegue imprimir um humor, uma ironia muito própria naquilo que escreve (e muito bem-vinda num livro que poderia ser demasiado pesado):
As praias de Kyiv também estão cheias de gente. Os sapadores foram meticulosos ao verificar tudo - não há minas. Além disso, os serviços de saneamento informaram que as praias de Kyiv receberam um tratamento com substâncias anticarraças. De modo que, agora, os banhistas têm apenas de se preocupar com os mísseis russos.
Ou neste excerto, em que o autor se refere ao facto dos russos deixarem nas cidades que ocupam um jogo de perguntas (sim, um jogo, uma espécie de trivial pursuit sobre a história da Rússia) chamado «O Mundo Russo»:
Tento imaginar os habitantes de Izyum - num apartamento com janelas e portas destruídas, sentados a uma mesa cheia de estilhaços de bombas - a jogarem a esse «O que sabem da Rússia?»
Apesar de ser ridículo, quando juntamos este jogo com o facto dos russos terem bombardeado museus, casas-museu de artistas e perseguido (e executado) escritores e jornalistas, torna-se claro que há uma intenção de apagar a cultura ucraniana e de a substituir pela cultura russa, ou soviética. Felizmente, alguns espólios de museus foram salvos e transportados para territórios não ocupados, mas outros foram destruídos ou roubados pelos russos.
É um diário e, portanto, foca-se bastante na visão e nas experiências do autor, mas é muito bem escrito e, ainda não sei como é que o autor conseguiu fazer isto mas, para um diário de guerra, tem um humor muito próprio.
«Quando perguntam aos ucranianos se estão a preparar-se para o fim do mundo, eles dizem que sim, estão; para o fim do mundo e para os seis meses que se seguirem.»
Além do livro e do documentário, recomendo também este texto sobre a destruição do património cultural da Ucrânia.