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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

Lições de grego de Han Kang: Prémio Nobel da Literatura 2024

(E uma pausa)

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Assim que vi a capa e li a sinopse deste livro, fiquei com interesse em lê-lo. Claro que, depois do anúncio de que Han Kang tinha recebido o Prémio Nobel da Literatura, esse interesse cresceu, até porque nunca li nada da autora.

Esta é a história de duas pessoas comuns que se conhecem num momento de angústia. Ela perdeu a mãe há pouco tempo e a custódia do filho. Além disso, e sem saber porquê, está a perder a voz. Ele é um professor de Grego que está a perder a visão gradualmente e sabe que a isso se seguirá a cegueira total. Em comum, têm a paixão pela linguagem.

Foi nessa altura que percebi, pela primeira vez, que estar apaixonado é como estar assombrado. Ainda antes de abrir os olhos de manhã, tu entravas por baixo das minhas pálpebras. Quando os abria, transferias-te imediatamente para o tecto, para o guarda-roupa, para a rua, para o céu longínquo, e brilhavas com uma luz cheia de efeitos. Assombravas-me com mais persistência do que imagino que qualquer fantasma conseguisse.

Esta é uma história contada com uma enorme sensibilidade e que nos leva a reflectir sobre a importância dos nossos sentidos, e sobre o papel que os outros têm na nossa vida. Ainda assim, sei que não é um livro consensual (algum é?) porque a minha mãe leu e não gostou nada.

A edição da Dom Quixote é uma tradução da versão inglesa (e não da versão coreana).

Podem ver a primeira entrevista de Han Kang após receber o Nobel aqui.


P.S - Eu vou de férias e o blog também. Voltamos daqui a duas semanas. 
Se quiserem, podem sempre ler os posts antigos ou seguir-me no Instagram.

O adversário de Emmanuel Carrère: a mentira bizarra que resultou no assassinato de uma família inteira

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Bizarra é a única palavra que me ocorre para descrever a história de Jean-Claude Romand. Para vos situar, esta história passou-se em França nos anos 90.

Jean-Claude tinha tido uma infância e adolescência relativamente normais. Quando chegou ao terceiro ano do curso de medicina, Romand decidiu não ir aos exames. Poderia ter repetido o ano. Poderia ter desistido e mudado de curso. Poderia ter feito muita coisa, mas Romand optou por mentir e fingir que continuava a tirar medicina. Quando o “concluiu” (coisa que nunca aconteceu) fingiu ser médico e ter arranjado um emprego na Organização Mundial de Saúde na Suíça.

Casou-se e teve dois filhos. Todos os dias, mas todos os dias, Jean-Claude saia de casa de manhã para ir para o “emprego”. Dava passeios pela floresta, visitava a sede e a biblioteca da OMS ou ficava fechado no carro a ler livros. À noite, voltava para casa depois de um dia “de trabalho”.

Como os pais tinham dinheiro, não estranhavam as constantes transferências de Romand para a sua própria conta. Sendo alguém com um "emprego" importante na OMS na Suíça, amigos e família não estranhava quando se oferecia para depositar o seu dinheiro em bancos suíços. Ganhariam muito mais dinheiro assim, dizia ele, enquanto gastava todo o dinheiro que lhe confiavam.

Durante dez anos, ninguém questionou. Ninguém suspeitou de nada.

Quando, finalmente, Romand achou que a sua vida dupla estava prestes a ser desmascarada podia ter, finalmente, contado a verdade. Que nunca acabara o curso de medicina. Que não era médico. Que nunca tinha trabalhado na OMS. Que nunca tinha depositado o dinheiro dos outros com o objetivo de dar lucros, mas sim para o poder gastar e continuar a sua vida dupla.

No entanto, Romand não fez nada disso.

A 9 de Janeiro de 1993, matou a tiro a mulher, os dois filhos e os pais. Como se não bastasse, ainda decide matar o cão dos pais. Mais tarde, encena um incêndio na casa que partilhava com a mulher e os filhos, do qual sai vivo.

À semelhança de Truman Capote em «A sangue frio», o autor de «O adversário» procurou compreender esta história do ponto de vista do assassino. Começou a trocar cartas com Romand, antes, durante e depois do julgamento.

Apesar de condenado a prisão perpétua, Romand saiu em liberdade em 2022, recebe uma reforma e está proibido pelo tribunal de contactar os media ou as famílias das vítimas. 

Um livro duro e inquietante.

Sociopath: a memoir de Patric Gagne

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Foi depois de ler este texto no blog Cup of Jo sobre "What It Feels Like to Be a Sociopath" que fiquei curiosa com o livro de memórias da autora e terapeuta - Patric Gagne - que escreveu sobre a sua experiência de vida enquanto sociopata.

I am a criminal without a record. I am a master of disguise. I have never been caught. I have rarely been sorry. I am friendly. I am responsible. I am invisible. I blend right in. I am a twenty-first-century sociopath. And I've written this book because I know I am not alone.

Patric começa a perceber que deixa as outras pessoas desconfortáveis muito cedo. Ao contrário das outras crianças, não sentia emoções como medo, culpa, remorso ou empatia.

Durante a maior parte do tempo, fez os possíveis para imitar o comportamento das outras pessoas, mas a pressão constante leva-a a roubar, mentir, invadir casas vazias, e até espetar um lápis no pescoço de outra criança. A determinada altura, Patric arranja um furão que percorre a casa durante a noite para roubar pequenos objectos e Patric acorda, todas as manhãs, com uma pequena colecção de itens roubados. Torna-se muito próxima de Baby, o furão, mas, quando ele morre, não consegue sentir tristeza.

Had you asked me back then, I would have described this compulsion as a pressure, a sort of tension building in my head. It was like mercury slowly rising in an old-fashioned thermometer. At first it was barely noticeable, just a blip on my otherwise peaceful cognitive radar. But over time it would get stronger. The quickest way to relieve that pressure was to do something undeniable wrong, something I knew would absolutely make everyone else feel one of the emotions I couldn't. So that's what I did.

É na universidade que Patric finalmente descobre que é sociopata numa aula de psicologia, mas também é nessa altura que percebe a forma horrível como os sociopatas são apresentados na sociedade em séries como Dexter ou Killing Eve. Também percebe que sociopatas e psicopatas são frequentemente postos no mesmo saco, com muita confusão em relação à diferença entre os dois. Por exemplo, a sociopatia nem sequer é um diagnóstico oficial do DSM-5, o manual de diagnóstico de transtornos mentais da Associação Americana de Psiquiatria.

Depois de uma passagem pelo mundo da música em Los Angeles, onde se torna manager e que inclui, por exemplo, festas na mansão da Playboy, Patric decide estudar psicologia e tirar um Ph.D. em sociopatia.

Na verdade, consegue ter uma vida bastante normal, casa-se, torna-se terapeuta, tem filhos e consegue provar que os sociopatas não são monstros, só precisam de ajuda para conseguirem um futuro digno.

Think you know a sociopath? I'll bet you're right. But I'all also bet it's the last person you suspect. Contrary to popular belief, sociopaths are more than their personality markers. They are children seeking for understanding. They are patients hoping for validation. They are human beings in need of compassion. But the system is failing them.

Gostei muito deste livro de memórias. Lê-se num fôlego porque queremos sempre saber o que vai acontecer a seguir. É um livro corajoso que recomendo muito. Infelizmente, não está traduzido em Portugal, mas há em audiobook, e-book e versão física em inglês.

A balada de Adam Henry de Ian McEwan

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Sou admiradora do Ian McEwan. É que este autor já escreveu 17 livros (fora contos e peças de teatro e outras coisas), os livros não têm nada a ver entre si e são sempre bons (pelo menos, os que já li). E este não foi excepção.

Em «A balada de Adam Henry» temos uma juíza do Supremo Tribunal, que julga casos do Tribunal de Família como, por exemplo, quando um casal se separa e o marido é muito religioso (numa daquelas religiões em que as raparigas deixam de estudar com 16 anos para se dedicarem à lida da casa e a parir) e a mulher não é nada religiosa e não se conseguem decidir em relação à educação da filha, pelo que o caso acaba a ser decidido pelo tribunal.

No centro da história, está o caso de Adam Henry, um rapaz com 17 anos (quase maior de idade) com leucemia que precisa de um tratamento que provoca uma anemia severa que tem de ser combatida com transfusões sanguíneas para lhe salvar a vida. No entanto, o rapaz recusa qualquer transfusão por ser testemunha de Jeová.

Os médicos apresentam o caso ao tribunal a pedir que seja permitido o tratamento e as transfusões. Os pais contrapõem que não querem que seja realizada qualquer transfusão pela sua religião.

Até que ponto é que um juiz pode decidir contra (ou a favor) dos pais? Até que ponto o estado se pode sobrepor à decisão dos pais e do próprio rapaz?

Além disso, a própria juíza, depois de anos a julgar casos de famílias alheias, tem a sua própria família a colapsar em casa.

Enfim, o livro é curtinho mas levanta questões importantes, eu gostei muito e até foi adaptado a filme.

O quinto filho de Doris Lessing

Ou sobre livros que puxam outros livros

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No final do livro de Rosa Montero «O perigo de estar no meu perfeito juízo» há uma entrevista a Doris Lessing, Nobel da literatura. A entrevista é interessante, mas o que me mais me chamou à atenção foi este excerto:

- Nas suas memórias refere-se de passagem a uma época em que sofreu imenso...

- Ah, sim, está a falar da época da minha depressão... Foi uma dor tão grande, tão forte... Creio que compreendo o que é a dor, sabe? Suprimimos coisas da nossa consciência, reprimimos sentimentos e trazemo-los enterrados no fundo do coração. (...) Importante é saber que acontece assim: que um dia, de repente, inesperadamente, cai sobre nós toda essa dor e nos inunda, e então temos de nos interrogar sobre em que é que teremos estado sentados, o que teremos estado a silenciar a nós próprios durante todos os anos anteriores.

Como ainda não tinha lido nada da autora, fui logo procurar alguma coisa à biblioteca e trouxe este exemplar velhinho de 1988, colado a fita cola.

Em «O quinto filho», temos um casal Harriet e David que vivem obcecados com a ideia de terem uma família grande. Compram uma grande casa vitoriana onde tencionam ter uma família feliz com 6, 8, 10 filhos... No início, tudo corre como planeado. Vamos lendo sobre um primeiro filho, um segundo filho, uma casa cheia na Páscoa e no Natal com a família nuclear de Harriet e David no centro de tudo. O sonho a tornar-se realidade. Claro que já sabemos que, quando chega o quinto filho, tudo muda. Também por isso, queremos ler até chegar ao quinto filho.

Não só Harriet tem uma gravidez e um parto difíceis como Ben - o quinto filho - é uma criança particularmente cruel e estranha que vai destruindo, aos poucos, o sonho de uma família feliz.

Gostei bastante, apesar da história ter tomado um rumo que não esperava. Agora, só me resta decidir o que ler a seguir desta autora que escreveu sobre tudo e mais alguma coisa. Têm alguma recomendação?

Sobre as eleições

Estava a ler «Conversas com escritores» de Isabel Lucas quando se soube o resultado das eleições nos EUA. E estava, precisamente, a ler sobre os Estados Unidos pelas palavras de Paul Auster:

Os Estados Unidos são um país complicado, é impossível dizer apenas uma coisa em relação a este país. (...) As pessoas vieram para cá, e quem cá estava eram os índios, que, milhares de anos antes, também tinham vindo de outro lugar. Toda a gente aqui é imigrante ou escravo, que é outro tipo de imigrante, trazido à força. Inventar um país, que grande tarefa! É fundado em ideais dos mais importantes que os seres humanos alguma vez inventaram; os princípios da democracia, de uma sociedade igualitária, um avanço extraordinário do pensamento humano. Mas, ao mesmo tempo, apesar das belezas da Constituição Americana, é também um país fundado em dois enormes crimes: o genocídio dos indígenas e a escravatura durante trezentos e cinquenta anos. É obsceno! O que complica os Estados Unidos da América, e continua a ser um problema, é que as pessoas não querem enfrentar essas duas coisas.

(...)

Todos os presidentes, mesmo os piores, venceram eleições com base numa ideia de esperança para o futuro. Este homem está a governar de acordo com o Armagedão. Tudo é negro, violado. A filosofia da direita da antigovernação não faz sentido. A democracia são as pessoas e o Governo. Como se pode estar contra as pessoas? Parece tão racional, mas estamos a viver num país irracional. (...) Os Estados Unidos são isto: a minha liberdade, e não tenho de me importar com mais ninguém.

A entrevista foi dada na casa de Paul Auster, em Nova Iorque, em 2017, mas continua tão actual como nessa altura, infelizmente. Paul Auster faleceu em Abril deste ano.

Duas escritoras para ler: Isabel Allende e Leïla Slimani

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Mulheres da minha alma de Isabel Allende

Já tinha saudades de ler Isabel Allende. Da autora, li «A casa dos espíritos», que tem uma review aqui no blog que data de 2016. Também li «Paula», um livro de não ficção sobre a morte da filha que é, certamente, um dos melhores livros que já li.

Admiro muito Isabel Allende. Aos 82 anos, já conta com 26 livros publicados e mais algumas peças de teatro. Começa a escrever um livro, todos os anos, no dia 8 de Janeiro.

Assim, quando vi este livro na biblioteca, decidi aproveitar. É um livro de não ficção sobre feminismo. A autora fala sobre as suas próprias experiências enquanto mãe e filha e depois explora outros temas relacionados com os direitos das mulheres, como o aborto, a mutilação genital feminina, entre outros.

Queremos uma civilização inclusiva e igualitária, sem discriminação de género, raça, classe, idade ou qualquer outra classificação que nos separe.

Gostei bastante do livro e de matar saudades de ler Isabel Allende.

 

O perfume das flores à noite de Leïla Slimani

Já tinha gostado muito de «Canção doce» e estava muito curiosa com este livro de não ficção em que a autora passa uma noite num museu em Veneza. A autora vai passeando pelo museu e recordando memórias da infância passada em Rabat (Marrocos) e da vida familiar em Paris. Vai também falando da forma como escreve e daquilo de que abdica para escrever.

Escrever é descobrir a liberdade de se inventar a si mesmo e de se inventar o mundo. (...)

O que não dizemos pertence-nos para sempre. Escrever é jogar com o silêncio, é dizer, de maneira indirecta, segredos que na vida real seriam indizíveis.

Também gostei deste livro, embora estivesse à espera de mais, e estou desejosa de me aventurar nos últimos romances da autora, que são «O país dos outros» e «Vejam como dançamos».

E vocês, já leram algum destes livros?

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