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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

Notas sobre uma execução de Danya Kukafka

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Achei que este livro tinha uma premissa vencedora: temos um homem (Ansel) que está no corredor da morte por ter assassinado várias raparigas. Quero logo saber como e porquê. O livro vai intercalando entre a espera deste homem no corredor da morte e as mulheres que foi conhecendo ao longo da vida, mas confesso que esperava mais. Primeiro, o livro está a ser promovido como um thriller e não é um thriller, é um drama. De resto, achei o livro morno e algo forçado.

Claro que Ansel teve uma infância miserável, que foi abandonado pelos pais e acabou num lar de acolhimento, onde teve dificuldade em integrar-se. Claro que começou a matar animais desde uma idade muito jovem, um percurso que culminou com o assassinato de três raparigas com apenas 17 anos. Ansel é o cliché dos serial killers.

A personagem mais interessante da história foi, para mim, Saffy, a detective que conheceu Ansel na infância e passa a vida toda a tentar provar que ele é culpado pelos assassinatos das jovens.

Senti que o livro me tentava empurrar para sentir alguma empatia por Ansel, mas confesso que não senti nenhuma. Pelas suas vítimas e famílias, sim. Mas por Ansel, não. Claro que fica a questão: será que Ansel era simplesmente um psicopata ou será que foi o resultado do trauma e do abandono que sofreu numa idade jovem? Mas nenhuma das duas explicações justifica os crimes hediondos que cometeu, e que pouco são abordados no livro, quase como se fossem apenas momentos maus da história de Ansel, momentos em que perdeu a cabeça e matou uma rapariga, porque sim. Mas não são, são momentos que o definem como um assassino, como alguém violento e capaz de perder a cabeça a qualquer momento, e que deve passar o resto da vida na prisão.

O único momento em que consegui sentir alguma coisa em relação a Ansel foi no final do livro, quando a autora se foca na pena de morte. Não concordo com a pena de morte e acho que Ansel teria passado bem com uma pena de prisão perpétua. A pena de morte, além de mais cara, tem um princípio de "olho por olho, dente por dente" que não se deve associar a um sistema de justiça. John Oliver fala bastante sobre isso neste e noutros vídeos do seu canal de Youtube:

Antes do 25 de Abril era proibido...

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Uma mulher entrar numa igreja de cabeça descoberta. Ir de minissaia, ou calças, para o liceu. Uma mulher casada viajar para o estrangeiro sem autorização do marido. O divórcio pela igreja. Casar com uma professora. Usar biquini na praia. Beber coca-cola. Jogar às cartas no comboio. Usar um isqueiro sem uma autorização especial. Dar beijos em público. Ser homossexual. Andar de bicicleta sem licença. Sacudir o pó. Ajuntamentos de mais de três pessoas que não fossem religiosos ou desportivos. Editar e vender certos livros. Ler certos livros, como muitos de Jorge Amado, de Maria Teresa Horta e de Natália Correia. Comprar, vender, e ouvir certos discos. Realizar e ver certos filmes.

Este livro entra em detalhes sobre todas estas proibições. Além disso, está recheado de fotografias da época e de anúncios publicitários que são simplesmente deliciosos de ver.

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Sobre o livro do momento: Identidade e família

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Confesso que fiquei surpreendida quando vi que o livro «Identidade e família», que foi apresentado por Passos Coelho e escrito por uma panóplia de autores está em primeiro lugar nas vendas da Wook. Não devia ter ficado, tendo em conta o resultado das últimas eleições e os dados que indicam que, na geração Z, as raparigas estão cada vez mais progressistas e os rapazes cada vez mais conservadores (dados daqui).

Não comprei o livro, porque tenho coisas mais úteis em que gastar o meu dinheiro, mas li a introdução que julgo ter sido escrita por todos os autores, porque não está assinada e que está disponível na preview da Wook.

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Toda a introdução se pode resumir no parágrafo de cima: a família tradicional (pai, mãe e filhos) é uma coisa boa para a sociedade e tudo o que fuja a este padrão é mau para a sociedade.

Enfim, por partes:

1) Não há famílias perfeitas (se há, eu não conheço nenhuma). Nem há pais perfeitos, nem há filhos perfeitos.

2) Esta introdução tem um ponto interessante que é o facto de apresentar referências de vez em quando, mas não nos pontos fundamentais. Onde estão os estudos que mostram que os filhos de uma "família tradicional" são mais saudáveis a nível mental e mais bem sucedidos do que os filhos de uma família não tradicional? Já disse que só li a introdução, por isso, não sei se haverá referências mais para a frente mas, a haver, espero que não sejam a bíblia que é citada logo no primeiro capítulo e que não constitui propriamente um artigo científico. 

Por exemplo, aqui:

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Mais uma vez, este parágrafo aparece sem quaisquer referências. Porque é que numa família com dois pais, duas mães, uma mãe, um pai, dois avós, numa família reconstruída com padrasto e madrasta não pode haver uma boa vinculação afectiva e um desenvolvimento psicológico saudável? Onde é que estão os estudos que demonstram isso?

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3) Acho que ninguém discorda disto, mas porquê que numa família não tradicional não pode haver amor, compreensão, transmissão de valores e tudo aquilo de que uma criança precisa para crescer bem? E, já agora, porque é que estamos a assumir que as "famílias tradicionais" são perfeitas e geram cidadãos conscientes? Vamos ignorar os casos de violência doméstica nas famílias ditas tradicionais?

4) Acho que também ninguém discorda de que precisamos de mais apoio às famílias, algo que a introdução também refere. Como se costuma dizer "it takes a village to raise a child" e, com a pressão do trabalho e da vida, perdemos a vila. Precisamos de mais creches gratuitas, de melhores licenças de parentalidade, de um SNS com mais qualidade, de que os preços das casas e rendas baixem para que quem quer ter filhos, ou quer ter mais filhos, independentemente do contexto familiar, o possa fazer. É uma pena que este livro se foque na família tradicional católica em vez de se focar em tudo aquilo que as famílias efectivamente precisam e que traria melhorias a toda a sociedade.

Sobre isto, vale a pena ler:

- O post do blog ler por aí

- O texto de Capicua no Jornal de Notícias

A História de Roma de Joana Bértholo

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Como seria hoje se aquela conversa tivesse sido diferente? Se não tivéssemos ido cada um para seu lado? Se tivéssemos escolhido um caminho diferente?

É muito sobre estas questões que se debruça este livro de Joana Bértholo. Temos duas pessoas que foram outrora um casal e que, dez anos depois de se terem separado, se reencontram na cidade de Lisboa. A sua história percorre as ruas de Buenos Aires, Marselha, Berlim, Beirute.

É um livro sobre a complexidade das relações, sobre a maternidade (ou a decisão da não maternidade):

Mulheres que sabem o que querem, que são ciosas do seu tempo e espaço e não abdicam deles facilmente, tendem a ser adjectivadas de egoístas ou autocentradas. O ensaio de Woolf (Um quarto só seu) predispunha-me para uma oposição que me duraria o resto da vida. Quando deixasse se ser sobre o tempo ou sobre o espaço, seria sobre o meu próprio corpo. A maternidade: como conseguir um quarto só para mim onde tomar esta decisão, sem pressão explícita ou implícita?

E também sobre o privilégio de uma geração (a minha) que teve acesso a oportunidades incríveis (de fazer erasmus, de fazer voluntariado europeu, ao programa LeonardoDaVinci), uma geração para quem o mundo (ou, pelo menos, a Europa) se tornou casa.

Este foi o primeiro livro que li de Joana Bértholo. Achei o livro extremamente bem escrito e a história muito bem construída. Quero ler mais livros da autora.

Leituras sobre a Palestina: Oriente Próximo de Alexandra Lucas Coelho

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No podcast «A beleza das pequenas coisas», Bernardo Mendonça menciona uma quote de Alexandra Lucas Coelho para o Público:

Não é Auschwitz. É Auschwitz em direto. Milhões de vidas para salvar agora. Não isolar Israel é ser parte do crime, da doença. A utopia acabou.

Já escrevi aqui sobre as novelas gráficas de Joe Sacco e o livro «Um detalhe menor», mais atual e de uma autora palestiniana. Mas ler e escrever sobre uma guerra que já matou 30 mil pessoas nunca deixa de ser impactante. E, arrisco-me a dizer, que o perigo é deixar de o ser. É ligarmos a televisão, vermos as imagens de Gaza e deixarmos de sentir o impacto de um genocídio a acontecer à nossa frente, a empatia que nos faz pensar como seria se fôssemos nós, as nossas famílias, tudo aquilo que amamos e conhecemos a ser destruído sem dó nem piedade.

O livro de Alexandra Lucas Coelho, «Oriente próximo», junta conteúdo escrito para o livro, reportagens e crónicas sobre Israel e a Palestina escritas entre 2005 e 2007. Pode parecer desactualizado, mas tal como os livros de Joe Sacco, que se passam nos anos 90, em ambos os casos aquilo que está a acontecer agora já se fazia anunciar.

Confesso que me custou a entrar neste livro, porque o primeiro capítulo é denso e cheio de informação histórica. Depois disso, são histórias, as histórias das pessoas com quem Alexandra Lucas Coelho se cruzou. Há histórias de palestinianos deslocados e de familiares de bombistas suicidas. Há histórias de judeus e de judeus ultra-ortodoxos. Há histórias de quem teme o Hamas e de quem a ele pertence.

Palavras de Orna Khon, advogada judia de uma organização de defesa dos direitos dos palestinianos israelitas, sobre a Lei da Nacionalidade e Entrada em Israel:

«Israel é uma falsa democracia quando discrimina com base na etnicidade.» Ou seja, dividindo os cidadãos entre judeus e não-judeus. (...) Desde então foram criadas leis como a Lei da Nacionalidade e Entrada em Israel que impede os palestinianos dos Territórios que sejam casados com palestinianos israelitas de viverem em Israel. «É uma lei apenas baseada na etnicidade, não só discriminatória como racista. (...) Esta lei afeta milhares de famílias, a quem é negado o direito básico da reunião familiar. (...) A contradição de base está no facto de Israel ser uma democracia e um Estado judaico. Ser uma democracia significa todos os cidadãos serem iguais.»

Este livro também fala bastante sobre a ascensão e eleição do Hamas, em relação à qual se sente bastante tensão e apreensão por parte das pessoas com quem Alexandra Lucas Coelho fala sobre o assunto:

Receio uma guerra civil, sim. O Hamas vem dos campos miseráveis de Gaza, de gente que sonhava ser professor como ambição máxima. (...) Quando se tem fome fica-se com raiva.

E sobre a história desta fotografia, tirada ao músico palestiniano Ramzi quando tinha apenas 8 anos:

«Foi a primeira vez que atirei uma pedra. Eu vinha da escola com um amigo e começámos a ouvir tiros. Quando olhei para o lado ele estava morto.» Viu os soldados israelitas à sua frente. Agarrou na pedra. Nem pensou que podia morrer. Uma raiva, uma dor sem medo. Um fotógrafo apanhou-a por acaso, e a cara de Ramzi correu mundo.

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E fala sobre os bombardeamentos israelitas e o constante incumprimento dos acordos internacionais:

O tio de Saafa está de visita para fazer uma proposta: enquanto durar a ofensiva israelita, não seria melhor dividir os filhos por várias casas?

- Sabemos de famílias que foram completamente atingidas. É para não os perdermos todos.

Claro que há muito mais para descobrir neste livro do que conseguiria cobrir aqui, mas vale muito a pena ler este livro de Alexandra Lucas Coelho que, além da edição física revista lançada agora pela Caminho, também está disponível no Kobo plus.

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