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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

Um cão no meio do caminho de Isabela Figueiredo

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Gosto que a sinopse deste livro diga pouco sobre ele. «Um cão no meio do caminho» conta-nos a história de um homem e uma mulher que sofrem, cada um à sua maneira, de solidão.

O livro começa com dois vizinhos, José Viriato, que vive a vida a recolher o lixo dos outros e a vendê-lo e da misteriosa vizinha Beatriz. O acaso junta-os e a pergunta deste livro é o que resulta quando se juntam duas solidões.

A memória é a mais poderosa base de dados. Ela regista as experiências dos sentidos, os diálogos e as vivências. Regista o que queremos guardar e o que gostávamos de esquecer. Por vezes, arranjamos estratégias para fugirmos à memória. Criamos informação que encaixamos no lugar do que pretendemos eliminar, mas por debaixo da toalha está sempre a verdade palpitando como um órgão saudável. A memória de cada um é o seu bilhete de identidade íntimo.

Foi o primeiro livro de Isabela Figueiredo que li que me foi recomendado, na mesma semana, por duas pessoas diferentes e, por isso, tinha as expectativas altas. Mas, ainda assim, saí surpreendida. Que livro!

A liberdade não era um valor permanente nem absoluto. Não havia um único ser humano livre. Nem os viajantes sem destino. Todos temos uma prisão, por vezes, secreta. Aquilo que ainda não se realizou. Aquilo que nunca deveria ter acontecido. Prisões simbólicas que as nossas almas habitam no silêncio.

Não só recomendo, como quero ler tudo o que Isabela Figueiredo já publicou.

Aproveitem também para ver uma entrevista com a autora no Instagram Os livros da lena.

Este blog faz 9 anos

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Este blog faz 9 anos e este é, por coincidência, o post 399. E, se durante estes 9 anos vi muitos blogs que gostava de ler desaparecerem e, se com as responsabilidade da vida de trabalhadora, entendo perfeitamente porquê, também é verdade que o ano passado foi o mais difícil da minha vida. E ter este blog, de certa forma, salvou-me. Encontrei um escape nos livros (muitos deles sobre luto), em escrever e pensar sobre eles e isso foi mais importante do que consegui perceber na altura.

Não consigo deixar de agradecer a quem por aqui vai passando, lendo e deixando comentários. Enquanto me fizer sentido, este vai continuar a ser o meu repositório dos livros que leio, das coisas em que penso e de algumas experiências que vou vivendo. Sempre com filtro, porque não deixa de ser um blog público na internet, mas isso faz parte.

Nestes 9 anos, foram estes os 9 posts mais lidos neste blog:

 

E estes foram os meus 9 preferidos:

Sobre o livro «Kim Jiyoung, nascida em 1982» e o feminismo na Coreia do sul, em Espanha e em todo o lado

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«Kim Jiyoung, nascida em 1982» de Cho Nam-Joo tem uma sinopse tão simples quanto: a vida de uma mulher nascida na Coreia do Sul nos anos 80.

Nesta altura, o país aplicou medidas de "planeamento familiar" para impedir o crescimento descontrolado da população, em que o aborto era legal para problemas de saúde, o que levou a que muitos casais abortassem quando engravidavam de raparigas por pressão social.

(...) a verificação do sexo do feto para depois abortar, caso fosse feminino, era uma prática comum - como se "as filhas" fossem, só por si, "um problema de saúde". Oh Misok dirigiu-se sozinha à clínica e "apagou" a irmã mais nova de Jiyoung. Nada daquilo era culpa sua, mas a verdade é que caía sobre ela toda a responsabilidade e não tinha ninguém na família que a confortasse naquela devastadora dor física e emocional.

Acompanhamos depois toda a vida de Kim, desde a infância, em que o irmão é o "menino de ouro" da casa, que não tem de fazer tarefas domésticas, ao contrário das irmãs. Até à adolescência, à difícil entrada num mercado de trabalho que não quer contratar mulheres (porque depois podem tornar-se mães e exigir licenças de maternidade), e depois o casamento e a maternidade (curiosamente onde começa e termina o livro).

Calhou estar a ler este livro quando vi o documentário da Netflix «Não estás sozinha: a luta contra la manada». O documentário conta a história de uma rapariga violada por um grupo de rapazes durante as festas de San Fermín de 2016, em Espanha. A decisão do tribunal de que tinha existido apenas abuso sexual e não violação levou a uma onda de protestos por todo o país (e pelo mundo). O caso chegou, finalmente, ao supremo tribunal e foi decidida uma pena de 15 anos por violação.

Mas é difícil não sentir uma raiva profunda quando esta miúda de 18 anos tem de ouvir um juiz dizer-lhe que, havendo um vídeo da violação em que ela não manifesta dor, é óbvio que não sentiu qualquer dor. Ou, pior ainda, quando um dos juízes do supremo tribunal critica o facto da vítima ter ficado completamente em estado de choque e sem reação durante a violação e pergunta: Mas era assim tão difícil dizer que não?

No livro, durante o final da adolescência e início da idade adulta, Kim é perseguida por um homem num autocarro. Acaba por conseguir livrar-se dele e, quando procura o consolo do pai, este pergunta:

Por que raio as tuas aulas de apoio ficam tão longe de casa? E por que diabos é que falas com estranhos? E essa saia... porque é que a usas tão curta? (...) Jiyoung conteve um suspiro. (...) Crescera a ouvir conselhos em relação às roupas que podia ou não usar, os cuidados a ter, a vestir-se de forma conservadora, a comportar-se sempre como "uma senhora". Que era responsabilidade dela evitar lugares, horários do dia e pessoas perigosas.

E tudo isto me fez lembrar este vídeo genial da SNL. Porque, às vezes, mais vale rir para não chorar.

Leituras sobre a Palestina: Uma mulher não é um homem de Etaf Rum

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Mais uma leitura sobre a Palestina, se bem que este livro é bem diferente dos que li anteriormente. Aqui temos duas mulheres, Isra e Deya, que são mãe e filha e que, em épocas diferentes e em países diferentes (uma nos anos 90 na Palestina e outra em 2008 nos Estados Unidos) tentam lidar com a realidade dos casamentos arranjados.

- É assim que queres passar o resto da tua vida? Sem aquecimento no inverno, a dormir em colchões da grossura de folhas de papel e quase sem comida suficiente?

(...)

- Sabes quantas raparigas matariam para estar no teu lugar, para deixar a Palestina e se mudar para os Estados Unidos?

É um livro muito descritivo, nalgumas partes achei que era demasiado descritivo, mas gostei muito desta história familiar, do foco na violência doméstica e na crise de identidade de Deya que, sendo filha de palestinianos e tendo nascido nos Estados Unidos sente que não se encaixa em lado nenhum.

Além disso, tanto Isra como Deya encontram nos livros um escape para as dificuldades da vida quotidiana.

Deya caminha entre as estantes da biblioteca. (...) Pensa nas histórias amontoadas nas prateleiras, apoiadas umas nas outras como corpos pesados, sustentando os mundos dentro delas. Deve haver milhares, milhões até. Talvez a história dela esteja algures aqui. Talvez finalmente a encontre. (...) Mas um pensamento toma conta dela, como se caísse dentro de água. Agora, posso contar a minha própria história, pensa.

Também gostei muito das referências ao título, que é a resposta dada a Isra sempre que quer fazer algo diferente do que é esperado das mulheres da sua cultura como ir para a universidade "Não podes, uma mulher não é um homem". Recomendo muito.

Pretendo continuar a ler e a informar-me sobre este conflito. O próximo livro na lista é o «Oriente próximo» de Alexandra Lucas Coelho, mas aceito outras sugestões.

Sobre votar

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Na lista das coisas maravilhosas da peça do Ivo Canelas está votar. Na minha, também. Adoro votar, mesmo quando sinto que as opções disponíveis deixam muito a desejar.

Este ano, celebramos 50 anos desde o 25 de Abril. Lembro-me da minha mãe me dizer que, no dia 25 de Abril de 1974, lhe disseram para não apanhar o comboio porque estava a haver uma revolução em Lisboa. Ela foi na mesma. Não a deixaram passar na rua do comércio (onde trabalhava) e acabou no quartel do Carmo. Não se lembra de muito mais, só de ver as pessoas muito felizes por serem, finalmente, livres.

Talvez seja injusta a posição em que estamos. Somos a geração que não viveu a ditadura, e que pouco saberá dela, pelo menos se não tiver interesse em procurar, em perguntar e, por isso, damos por garantida a democracia.

Custa-me que se tenha lutado tanto por um direito e que os números da abstenção sejam sempre medonhos.

No livro de crónicas «Tudo o que ouço é coração», Carmen Garcia também fala bastante sobre o 25 de Abril:

Para quem sofrera tanto com a ditadura, o boletim de voto revestia-se de uma importância imensa, porque representava, finalmente, a liberdade. «Aquilo não é uma folha da papel. Carmen. São as asas de uma gaivota», dizia-me o meu tio.

Hoje, fui votar. E mesmo com pouca confiança no resultado dos próximos 4 anos, senti-me livre.

Rumores de Ashley Audrain: um livro sobre maternidade

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Não escrevo sobre todos os livros que leio no blog. Normalmente, se não terminei o livro ou se sinto que não me acrescentou muito, não escrevo sobre ele e basta-me ir a meio do livro para saber se vou ou não escrever sobre ele.

Neste caso, tive dúvidas. Gostei muito do thriller anterior da autora «Instinto», mas não consegui gostar tanto deste «Rumores». Primeiro, porque apesar de estar classificado como um thriller, acho que é mais um drama passado numa pequena comunidade. Depois, porque apesar de ter gostado da ideia inicial, não acho que tenha sido bem desenvolvida e achei o final apressado.

Aquilo que gostei foi o facto deste ser, sobretudo, um livro sobre as várias experiências da maternidade. Passa-se numa pequena comunidade em que uma criança cai de uma janela a meio da noite, e isto deixa a comunidade em alvoroço: será que se atirou? será que foi um acidente? será que alguém a empurrou?

Os capítulos são alternados entre as várias mulheres. Temos uma mulher que perdeu um filho há muitos anos e ainda não superou esse luto (é possível sequer superar o luto de um filho?), temos uma mulher que quer muito ter filhos e não consegue (e como é que se supera isso?), temos uma mãe que gosta genuinamente de ser mãe e temos uma mãe que põe a carreira em primeiro lugar e que, arrisco-me a dizer, não tira qualquer prazer da maternidade (mas agora também já não pode voltar atrás).

O final é meio apressado e deixa o futuro das personagens algo em aberto. Ainda assim, gostei das questões que levanta sobre maternidade e, por isso, valeu a pena a leitura (mas só por isso).