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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

22/11/63 de Stephen King: uma viagem no tempo para reverter a morte de J. F. Kennedy

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O assassinato de J. F. Kennedy a 22 de Novembro de 1963 em Dallas, no Texas, foi um marco incontornável da história dos Estados Unidos. Seguiram-se o assassinato de Malcolm X (activista pelos direitos dos negros) em 1965 e Martin Luther King e Robert F. Kennedy em 1968.

Mas, será que se J. F. Kennedy nunca tivesse sido morto, os restantes assassinatos teriam acontecido? Será que os Estados Unidos teriam participado na Guerra do Vietname? Como seria o país, hoje em dia, se este presidente nunca tivesse sido assassinado?

São estas as questões que compõem este calhamaço de 900 páginas de Stephen King.

Neste livro, temos o dono de uma hamburgueria que descobre, por acaso, que a sua despensa é um portal do tempo que o faz retornar, sempre, ao dia 9 de Setembro de 1958. A partir daí, decide que a sua missão de vida é reverter o assassinato de Kennedy cinco anos mais tarde. No entanto, uma doença terminal leva-o a passar a missão a Jake, um professor com uma vida tranquila e sem família.

Começa então assim, a nova vida de Jake (que no passado se torna George). George regressa a 1958 primeiro para impedir um homem de matar toda a sua família e "testar" se efetivamente mudar o passado altera o futuro da forma que ele espera. E regressa uma segunda vez a 1958 para viver no passado durante cinco anos com o objectivo de travar Lee Oswald que, de acordo com a maioria das investigações, disparou três tiros contra Kennedy enquanto este passeava num carro aberto numa avenida em Dallas com a sua mulher, Jackie Kennedy.

Lee Osvald deserta para a União Soviética, onde casa com uma mulher bielorrussa e tem uma filha. Só depois regressa ao Texas e, a a partir daí, Jake acompanha todos os passos de Lee que divide o seu tempo entre dar sovas na mulher, conviver com expatriados russos e defender a causa soviética e Cuba, o que o leva a odiar Kennedy que faz acesos discursos contra a ameaça soviética.

Curiosamente, Osvald foi assassinado dois dias da morte de Kennedy por Jack Ruby que alegou razões passionais para cometer o crime. Até hoje, se questiona se a morte de Kennedy foi um incidente isolado ou parte de uma conspiração maior, algo que é bastante abordado no livro, uma vez que tornaria o objectivo de George de deter os assassinos quase impossível.

Mas, claro, não vou contar como termina esta história e se George (ou Jake) é ou não bem sucedido na sua missão de mudar o rumo dos Estados Unidos.

Apesar das 900 páginas, a escrita de King é fluida, a história é interessante e está muito bem contada, com muitas descrições dos Estados Unidos dos anos 50/60.

Gostei muito da primeira parte, mas achei que a segunda parte em que George fica a viver 5 anos no passado se arrastou de forma desnecessária. Além disso, George envolve-se numa relação amorosa que é o cliché dos clichés. Eles estão juntos pela primeira vez e é tudo fantástico e maravilhoso. E, claro, a mulher tem um marido que é um traste do qual precisa de ser "resgatada" pelo nosso personagem principal. E, mesmo sabendo que ele guarda algum grande segredo, está mortinha por casar com ele e já não consegue viver sem ele. Enfim, confesso que achei esta parte da história inverosímil e algo aborrecida, mas livro não é unanimidade. 

Entretanto, adorei a terceira parte do livro que é, claro, quando George tenta impedir o assassinato do antigo presidente dos Estados Unidos.

Foi o primeiro livro que li do Stephen King fora do registo de terror e, apesar de não ter gostado tanto como esperava, estou curiosa para ler outro livro do Stephen King fora desse registo, que é o «À espera de um milagre».

E por aí, que livros do Stephen King recomendam? Já leram este?

Como educar para o feminismo por Chimamanda

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Para contrastar com o post da semana passada, esta semana temos «Querida Ijeawele - Como Educar para o Feminismo» de Chimamanda que é uma carta destinada a uma amiga com alguns pontos sobre como educar a sua filha bebé para o feminismo:

  1. Sê uma pessoa inteira.
  2. Façam-no juntos. Lembras-te de na escola primária termos aprendido que os verbos indicam ação? Bem, um pai é tanto verbo como uma mãe.
  3. Ensina à tua filha que a ideia de «papéis para cada género» é uma tolice.
  4. Cuidado com o perigo daquilo a que chamo Feminismo Linha Zero. Ou se acredita na plena igualdade dos homens e das mulheres ou não.
  5. Ensina a tua filha a ler. Ensina-a a gostar de livros.
  6. Ensina-a a questionar a linguagem. A língua é o repositório dos nosso preconceitos, das nossas crenças, das nossas pressuposições.
  7. Nunca fales do casamento como uma forma de realização pessoal
  8. Ensina a tua filha a rejeitar o desejo de agradar.
  9. Dá à tua filha um sentido de identidade.
  10. Sê deliberada na forma como abordar a questão da aparência dela.
  11. Ensina-a a questionar o uso selectivo da biologia que é feito pela nossa cultura como «razões» para certas normas sociais.
  12. Fala-lhe sobre sexo, e começa cedo.
  13. Assegura-te de que estás a par do amor romântico na vida dela. Penso que o amor é a coisa mais importante na vida. Seja de que tipo for, como quer que se defina, mas encaro-o geralmente como ser-se altamente valorizado por outro ser humano e valorizar altamente outro ser humano.
  14. Quando lhe falares sobre opressão, tem o cuidado de não transformar os oprimidos em santos.
  15. Informa-a sobre a diferença. Torna a diferença comum. Torna a diferença normal. Ensina-a a não atribuir valor à diferença. E a razão para não o fazeres não é para ser justa ou bondosa, mas meramente para ser humana e prática. Porque a diferença é a realidade do nosso mundo. E informando-a sobre a diferença estarás a prepará-la para sobreviver num mundo de diversidade.

Uma vida para amar: tudo o que uma esposa de 1964 devia saber

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«Uma vida para amar» é um livro de 1964, traduzido do italiano e publicado em Portugal pela mesma altura. Foi um dos livros pré 25 de Abril que descobri aqui por casa e achei que merecia uma menção aqui no blog, porque há passagens verdadeiramente tenebrosas.

Logo na introdução, a autora Luisa Guarnero avisa que “algumas noções de carácter rigorosamente científico poderiam tornar-se árduas para a mentalidade feminina não especificamente preparada”. Por outras palavras, conceitos complexos foram simplificados para poderem ser entendidos por mulheres que são, afinal, o público-alvo deste livro sobre casamento e maternidade.

Seria injusto não dar algum crédito a este livro porque, assumo que alguns capítulos sobre o ciclo menstrual, a preparação para o parto e como cuidar de um bebé possam ter alguma utilidade para mulheres naquela altura.

São, claro, os comentários típicos da época que me levaram a ler este livro, como este sobre o que significa a noite de núpcias:

Matrimónio não significa de modo nenhum para a esposa renúncia à própria pureza, trocando-a por um estado de vida sensual e pecaminoso; nem a oferta da virgindade como voluntária submissão, dom jubiloso de si própria, que é expressão e símbolo de um dom mais completo, o de uma vida inteira, ao homem amado e aos filhos, e ao mesmo tempo um enriquecimento da própria personalidade da mulher, da própria feminilidade, precisamente porque na vida humana nada se realiza e se conquista se não através do sacrifício.

Outra sobre a consumação do acto conjugal:

Insisto sobre o recurso imediato a um ginecologista porque em determinados casos poderá ser aconselhável uma pequena incisão cirúrgica para facilitar a consumação do acto conjugal.

Sobre o matrimónio e a maternidade:

Já terás ouvido dizer e repetir que o amor na mulher tem um fundamento materno, e que o mesmo instinto materno encontra a sua primeira satisfação no amor pelo marido (…) E para a mulher representa certamente uma ajuda, em particular quando o acto conjugal se revela um sofrimento ou de qualquer maneira não seja a verdadeira fonte das doces emoções sonhadas. Está na natureza providencial das coisas que, enquanto o homem chega constitucional, mas fácil e imediatamente a realizar uma plena correspondência de sentimento e de satisfação erótica, a mulher é principalmente preparada pela sua natureza materna.

Sobre trabalhar versus ser dona de casa:

Quando uma mulher decide casar, geralmente qualquer que seja o seu trabalho, (...) tem que encarar a alternativa de escolher entre a carreira profissional e o dever de mulher, de mãe, de dona de casa. São notáveis e frequentes os casos de mulheres que alcançaram a celebridade no campo profissional, artístico, cinematográfico e decidem cortar com todas as suas actividades para se dedicarem à sua missão feminina. Uma mulher sensata, normal, equilibrada, só continuará a trabalhar se o seu contributo económico for condição fundamental.

Depois do casamento, o livro debruça-se sobre a maternidade, nomeadamente sobre a infertilidade:

Um dos problemas que a ciência moderna propôs à consciência dos casais estéreis é o da «fecundação artificial». Afirmarei energética e brevemente que, qualquer que seja a forma de inseminação artificial, é considerada ilícita pela moral e obviamente pela Igreja. (...) Todos estes meios, que são chamados anticoncepcionais, privam o acto de atingir o seu fim natural e são imorais.

Sobre o papel do homem na gravidez e maternidade:

A nova vida humana (...) milagre envolvido em tanto mistério que escapa quer aos poderes da razão quer aos da vontade do homem, que deve limitar-se ao papel de «co-creator» e de «colaborador».

Sobre o parto e o papel da mulher no mesmo:

Devem vencer com pleno domínio de si próprias, sem gritos inúteis e enervantes, sem lamentações ou invectivas, a fadiga ainda que muitas vezes dolorosa do trabalho de parto.

Claro que na secção da maternidade, quase tudo (se não tudo) é sobre o papel da mulher como mãe e nada é dito sobre o papel do homem como pai.

No ano em que celebramos os 50 anos sobre o 25 de Abril nunca é demais lembrar o longuíssimo caminho que as mulheres percorreram deste este livro até aos dias de hoje.

Leituras sobre a Palestina: Joe Sacco e Um Detalhe Menor

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Palestina por Joe Sacco

Joe Sacco passou dois meses com palestinianos nos territórios ocupados no Inverno de 1991 a 1992. Daí, resultaram várias novelas gráficas que contam as histórias das pessoas com quem se encontrou e que reflectem a repressão de Israel sobre a Palestina. Li os dois primeiros volumes "Palestina: na faixa de Gaza" e "Palestina: uma nação ocupada."

Neles, Joe Sacco entrevista palestinianos que contam as suas histórias e que envolvem desde os campos de refugiados, ao fecho de escolas e à proibição de se ensinar a história na Palestina, à dificuldade em conseguir autorizações israelitas para trabalhar ou para viajar, em conseguir cuidados médicos em situações de urgência, à ocupação de casas e olivais. São histórias tristes e duras, de miséria, de pessoas que sonham, não em ter uma casa maior, mas em pôr um teto ou um chão a cobrir a areia da casa minúscula que foram forçados a habitar. Achei particularmente duro o relato de um casal que fica a ver o filho esvair-se em sangue durante 3 horas depois de ter levado um tiro durante os conflitos. Como o recolher obrigatório dos soldados israelitas já estava imposto, não o puderam levar ao hospital.

Quase todos os palestinianos com quem Joe fala passaram por prisões com condições deploráveis, muitas vezes, sem possibilidade de ir a julgamento sequer. Com o passar do tempo Israel sentiu pressão e foi melhorando as condições dos prisioneiros que se organizaram, criando uma comissão que tratava das refeições e até uma comissão de chá, que garantia que todos os prisioneiros eram servidos de chá na mesma quantidade. Como havia professores universitários, advogados e outras pessoas com altas qualificações entre os prisioneiros, criaram também palestras e cursos, que escondiam o melhor que podiam dos guardas prisionais.

Muitos palestinianos (como esta mulher em baixo) vêem as suas casas demolidas por soldados israelitas em zonas ocupadas. Depois, têm de construir as suas casas noutros locais, mas como não conseguem obter permissão para construir habitação pelo governo israelita, essas casas são consideradas ilegais e rapidamente demolidas. Assim, vão andando de aldeia em aldeia, até existir cada vez menos território palestiniano.

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Joe Sacco consegue a proeza de descrever as situações como as testemunhou e de não pintar os palestinianos como anjos ou como não tendo defeitos (assiste inclusive a um julgamento cuja sentença seria apedrejamento público).

Mais para o final do livro, Joe Sacco vai para Israel e tenta compreender também a perspectiva dos israelitas sobre a ocupação.

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Um detalhe menor da escritora palestiniana Adania Shibli

Na primeira parte deste livro, temos uma história passada em 1949, quando um grupo de soldados israelitas ataca um grupo de beduínos no deserto do Negueve, dizimando-o. Entre as vítimas, há uma rapariga adolescente que é capturada, violada pelos soldados, morta e enterrada no deserto.

Na segunda e, para mim, mais interessante parte deste livro, estamos quase na actualidade, e uma mulher a viver na Palestina descobre uma menção ao crime de 1949 e decide tentar desvendar os detalhes que envolvem o crime. É aqui que percebemos melhor a experiência de viver num território ocupado. A nossa personagem tem um passaporte da zona A que a impede de visitar qualquer museu ou arquivo onde pudesse encontrar mais informações sobre o caso, fala-nos sobre o stress de passar nos pontos de controlo, sobre o desprezo dos soldados israelitas, sobre as explosões que são tão comuns que se tornaram apenas um detalhe do dia-a-dia.