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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

Hello, beautiful de Ann Napolitano

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Este livro é uma homenagem a «Mulherzinhas» de Louise May Alcott, por isso, como não podia deixar de ser temos uma história familiar de quatro irmãs muito diferentes entre si. Julia, a mais velha, é pragmática e racional, Sylvia é apaixonada por livros e histórias, Cecelia é apaixonada pelas artes e Emeline é a cuidadora. As irmãs vivem com os pais - Charlie e Rose - uma vida familiar feliz repleta das peripécias de uma família grande.

És demasiado jovem para compreender realmente que a vida é curta, mas é. Não quis impedir-te quando estavas a afastar-te de uma coisa que não importava para te aproximares de uma coisa que sim. Eu e tu somos farinha do mesmo saco, querida. Nenhum de nós espera que a escola ou o trabalho nos preencha. Olhamos pela janela, ou para dentro de nós mesmos, em busca de algo mais. (...) A maioria das pessoas não percebe essa distinção, por isso faz apenas o que lhe mandam. Claro que isso deixa as pessoas entediadas e irritadas, mas estão convencidas que é a condição humana.

Tudo muda quando William Waters, que cresceu numa casa sem amor, se apaixona e se casa com a irmã mais velha, Julia. Os problemas de saúde mental de William vão-se tornando mais evidentes com o tempo e abanam toda a família Padavano de forma irremediável.

Estás deprimido, não louco. Não é insanidade estar deprimido neste mundo. É mais são do que estar feliz. Nunca confiei naqueles indivíduos sempre animados que sorriem aconteça o que acontecer.

Ao longo do livro, os capítulos vão intercalando entre as diferentes personagens, por isso, vamos sempre sabendo o que cada uma está a pensar ou a sentir em relação a determinado acontecimento. Além disso, acompanhamos várias décadas das suas vidas, o que torna esta história incrível, com um desenvolvimento de personagens impressionante. Conseguimos apaixonar-nos por todas elas e sofrer quanto tomam decisões erradas. É um livro sobre relações familiares, mas também sobre saúde mental, sobre os caminhos que escolhemos e as consequências que daí advêm para nós, e para os outros. Vai ser, certamente, um dos melhores livros que li este ano.

Não me esqueças de Alix Garin: a novela gráfica sobre o Alzheimer

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Há cada vez mais novelas gráficas a serem editadas em Portugal, e ainda bem, porque algumas, como esta, são pequenas pérolas.

A avó de Clémence, a personagem principal, sofre de Alzheimer e, perante o seu desespero em estar fechada num lar, Clémence decide raptar a avó e levá-la numa viagem em busca da hipotética casa de infância.

É claro que fazer uma viagem destas com alguém que sofre de Alzheimer não é fácil, e todo o desespero associado à doença transparece muito bem nas tiras da autora. No meio de tudo isto, a personagem principal está a passar pelo seu próprio processo de auto-descoberta.

É um livro lindo, sobre uma doença dura que as famílias vivem, tantas vezes, de forma muito solitária e sem qualquer apoio. Recomendo muito.

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Vínculos ferozes de Vivian Gornick: uma relação mãe-filha complicada

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Não tive a melhor experiência de leitura deste livro (tanto que o comecei a lê-lo no Verão passado como podem ver pela foto) e acho que a culpa está toda na capa. A capa diz “melhor livro de memórias dos últimos 50 anos segundo o The New York Times”. Ora, isto cria expectativas bastante elevadas sobre aquilo que vamos ler.

«Vínculos ferozes» foca-se na relação entre uma filha e uma mãe, já idosa, que juntas percorrem as ruas de Manhattan e recordam o passado. Adorei a fase inicial do livro em que as duas falam sobre o tempo em que viveram num prédio em que toda a gente se conhecia e sabia da vida de toda a gente:

Vivi naquele edifício entre os seis e os vinte e um anos. Tinha vinte apartamentos, quatro por piso, e do que me lembro é de um prédio cheio de mulheres. Mal me lembro dos homens. Eles estavam por todo o lado, claro - maridos, pais, irmãos - mas só recordo as mulheres. (…) Argutas, voláteis, analfabetas, moviam-se como personagens de Dreiser. Havia anos de calma aparente, e depois, de súbito, uma irrupção de pânico ou desnorte: duas ou três vidas marcadas (porventura estragadas), e o tumulto amainava. E eu - a rapariga a crescer no meio delas, a ser moldada à imagem delas -, eu absorvia-as como absorveria clorofórmio num pano encostado à minha cara.

A partir daqui, muito do livro foca-se na morte do pai de Vivian e na forma como mãe e filha criaram uma relação de co-dependência peculiar. Elas não conseguem viver uma sem a outra, e insistem em fazer caminhadas a relembrar o passado. Mas basta a mãe fazer algum comentário acutilante e a relação degrada-se. Não conseguem estar uma sem a outra, mas também não conseguem estar muito tempo juntas.

É um livro extremamente bem escrito (e o audiobook também é bom), mas, às tantas, cansei-me um bocadinho desta relação mãe-filha e não me consegui interessar muito pela conturbada vida amorosa de Vivian. Enfim, achei que a história, apesar de boa, se tornou demasiado repetitiva e aborrecida e ouvi as últimas páginas a custo.

As lições do pinguim de Tom Michell

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Eu pensava que este livro era uma história fofinha sobre um inglês que vai para o Uruguai, salva um pinguim cheio de petróleo numa praia e cria uma amizade enternecedora com ele, e era mesmo o género de livro que eu estava a precisar de ler.

Na realidade, além da amizade que se cria entre o personagem principal e o pinguim, a história passa-se na Argentina dos anos 60 e 70, altura em que o governo peronista terminou com um golpe militar e há muitas referências políticas no livro também. Que só o tornam, na minha opinião, mais interessante.

O Juan Salvador foi um pinguim que cativou e encantou todos os que o conheceram naqueles dias sombrios e perigosos - dias que assistiram ao colapso do governo peronista em atentados terroristas e numa revolução violenta, quando a Argentina estava à beira da anarquia. Foi uma altura em que as liberdades, oportunidades e atitudes eram completamente diferentes das de hoje. Contudo, um jovem viajante como eu e o inimitável e indominável Juan Salvador viríamos a tornar-nos companheiros muito felizes depois de eu o salvar em circunstâncias dramáticas de mares mortíferos da costa do Uruguai.

O pinguim acaba a viver durante algum tempo no colégio interno onde Tom trabalha. É um ambiente bastante protegido, mas lá fora, a Argentina está a implodir. A inflação dispara todos os dias, ao ponto das pessoas receberem o ordenado e gastarem tudo para depois venderem aquilo de que não precisam a preços mais elevados. Ou de irem ao supermercado, chegarem à caixa e os preços já estarem mais elevados do que os que estão marcados nos produtos. Ou de uma viagem de avião entre a Argentina e a Inglaterra custar o preço de um carro.

Claro que não deixei de me lembrar desta tira da Mafalda (do autor Argentino Quino):

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Enfim, é um livro fofo, mas que também se foca um pouco na história política da Argentina, e recomendo bastante. Como é que ainda não foi transformado num filme? Não faço ideia.

Tudo o que ouço é coração: as crónicas de Carmen Garcia

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Já seguia a Carmen Garcia no Instagram há algum tempo. Não concordo com todas as suas opiniões, mas gosto do facto de abordar assuntos difíceis numa rede que pode ser tão superficial como o Instagram. Não sabia bem o que esperar desta colectânia de crónicas que foram sendo publicadas no Público entre 2019 e 2022 e que foram organizadas por Isabel Alçada. Fiquei agradavelmente surpreendida. Carmen aborda temas como a leitura em Portugal, o abandono dos idosos, o feminismo, a maternidade, o divórcio, a surdez do filho, a morte medicamente assistida, a saúde mental, a toxicodependência, entre muitas outras coisas relacionadas com a profissão de enfermagem.

Há poucos momentos em que alguém consegue descrever exactamente aquilo que sentimos mas temos dificuldade em pôr em palavras, e isso aconteceu-me várias vezes ao longo deste livro:

Sabem, 2022 foi um ano de subtracção. Menos uma pessoa importante nas contas da minha vida. Mais uma fotografia com as datas de nascimento e morte. Mais uma coroa de rosas brancas em forma de coração e um cartão com uma pomba a dizer «Eterna saudade». Mais uma hora dentro de uma funerária a ver um catálogo de caixões, quando tudo o que queria era fugir. Menos um lugar para visitar. Mais um cadeirão vazio. Mais um buraco no peito para não fechar nunca mais.

Também gostei muito da forma como a Carmen abordou a surdez do filho, quando ele lhe perguntou porque era o único surdo na escola:

Quero dizer-lhe que é o único porque é o mais especial, mas raios me partam se vou ceder à tentação de romantizar a diferença. A diferença mostra-se, traz-se à rua e inclui-se. Mas em nenhuma circunstância se deve romantizar, especialmente quando condiciona opções e oportunidades.

Um excerto de uma crónica sobre o aborto:

A maturidade e a maternidade trouxeram-me a certeza de que ser contra o aborto significa não o fazer, mas jamais significa impor a outras mulheres que não o façam. Cada mulher com a sua escolha.

Por fim, um excerto de uma crónica sobre o Alzheimer:

Fernando Pessoa escreveu que vivemos da memória. E eu tenho a certeza que nada nos resta quando a perdemos. Existe um corpo, sim. Mas um corpo sem memória é uma casa vazia. Sem gente, sem livros e sem retratos nas paredes. E quem de nós deseja existir numa casa assim? 

Foi um livro que li devagarinho. Afinal, a vantagem das crónicas é podermos ler uma ou duas por dia e ir intercalando com outros livros. E ficarmos a pensar naquilo que lemos. Enfim, gostei muito, e acho que quem gosta de seguir a conta do Instagram também vai gostar.