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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

Frida e as cores da vida de Caroline Bernard

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Sinto que este livro é difícil de criticar, porque é uma biografia romanceada (ênfase em romanceada) da vida de Frida Kahlo. Apesar da autora ter usado algumas biografias como pesquisa, e ter estado em contacto com alguém que trabalha no museu da Frida Kahlo, no México, este livro continua a ser um romance.

O livro começa com o dia que mudou a vida de Frida. Tinha 18 anos e seguia num autocarro que embateu num elétrico. O resultado foram múltiplas fracturas que resultaram numa vida de médicos, cirurgias e dor.

A partir daí, o livro foca-se sobretudo na relação de Frida com Diego Rivera. Frida admirava a arte de Diego e a sua paixão pelo comunismo. A partir daqui, há dois elementos que se destacam:

Comida

Quando Frida e Diego se casam, decidem ir viver para o mesmo prédio onde vivia a ex-mulher de Diego. Apesar de, inicialmente, Frida não gostar da ideia (e acho que ninguém a julga por isso), a ex-mulher acaba por ensinar Frida a cozinhar os pratos preferidos de Diego. Frida torna-se a esposa perfeita. Todos os dias, faz o almoço de Diego e leva-o para o trabalho enquanto ele está ocupado a pintar os murais de Palácio Nacional (que, de facto, são qualquer coisa de extraordinário).

Casas

Frida e Diego mudam-se para a famosa casa azul, que era a casa dos pais de Frida, e que hoje está transformada num museu, que até oferece uma visita virtual. Na verdade, este parece ser um período mais tranquilo na vida do casal. Ainda assim, Frida está constantemente dividida entre ser apenas vista como a esposa de Diego Rivera e querer pintar e ser independente com a sua arte.

Depois, Diego é convidado pela família Ford, da indústria de carros, para pintar murais em Detroit. E é em Detroit que Frida sofre um aborto (que não seria o último). E é aqui que pinta aquele que é, provavelmente, um dos seus melhores quadros.

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Fonte: fridakahlo.org

Depois, Diego, é convidado a pintar um mural em Nova Iorque. Frida tem saudades do México, quer voltar a casa e acaba por conseguir convencer Diego a regressarem ao país.

No México, mudam-se para a casa de San Ángel desenhada por um amigo Diego que, na verdade, são duas casas (uma para cada um) unidas por uma ponte. A de Diego é maior (porque será?) e a de Frida, que era uma pessoa deficiente, é acessível por uma escada em caracol (sem comentários).

Frida deixa de fazer o almoço de Diego e diverte-se tendo os seus próprios amantes, principalmente mulheres, de quem Diego não tinha ciúmes por achar que não eram uma ameaça.

A partir daqui, as coisas só pioram, o casal tem falta de dinheiro. Frida sofre outro aborto e tem vários dedos de um pé amputados. Como se tudo isto não bastasse, Diego decide ter uma relação com a irmã de Frida. A relação entre  Frida e Diego temina e Frida muda-se para um apartamento, onde consegue ter alguma independência.

Mas não, a relação conturbada do casal não acaba aqui, porque se reconciliam e voltam a viver juntos, dando inclusive proteção a Trotsky (com quem Frida acaba por ter uma relação) e a mulher quando tentam escapar a tentativas de assassinato.

Frida consegue fazer uma exposição em Paris e um dos seus quadros é comprado pelo Louvre. Ela e Diego voltam a casar.

Mas a sua saúde vai-se sempre deteriorando e Frida acaba por morrer na casa que sempre amou, a casa azul, com apenas 47 anos.

Este último período da vida de Frida, marcado pela dor, está bem descrito no seu diário:

I've been sick for a year now. Seven operations on my spinal column. Doctor Farill saved me. He brought me back the joy of life. I am still in the wheel-chair, and I don't know if I'll be able to walk again. (...) I don't feel any pain. Only this... bloody tiredness, and naturally, quite often, despair. A despair which no words can describe. I'm still eager to live. I've started to paint again.

Como disse, é um romance sobre a vida de Frida Kahlo e, por isso, é para ser lido com uma pitada de sal mas, ainda assim, gostei muito desta leitura.

Leituras sobre luto: Simone de Beauvoir e Chimamanda

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Notas sobre o luto de Chimamanda Adichie - Talvez por ter lido anteriormente «O ano do pensamento mágico» de Joan Didion, depois «Uma morte suave» e só depois este livro, achei que esta leitura ficou um bocadinho aquém em comparação com os restantes. Neste livro, Chimamanda fala sobre a morte do pai, durante a pandemia. A autora estava nos Estados Unidos e, numa altura em que os aeroportos estavam fechados, o pai morreu na Nigéria, portanto, toda a experiência do luto foi feita à distância. É um livro curtinho, que se lê num instante, mas não me marcou muito. Ainda assim, pretendo ler outros livros da autora (e tenho imensos na minha wishlist!).

Uma morte suave de Simone de Beauvoir - É verdade que Beauvoir (tal como Chimamanda) é mais conhecida pelos seus escritos feministas (que ainda não li), mas também escreveu romances e não ficção, nomeadamente este livro incrível sobre a morte da mãe.

Para mim, a minha mãe tinha existido sempre e eu nunca tinha pensado seriamente que ela desapareceria um dia, dentro de pouco. O seu fim, tal como o seu nascimento, situava-se num tempo mítico. Quando eu pensava: ela é suficientemente velha para morrer, eram palavras ocas, como tantas. Pela primeira vez, eu vislumbrava nela um cadáver a prazo.

O livro é um longo ensaio sobre a mãe ter passado de ser uma pessoa independente para estar numa cama de hospital, depois de sofrer uma factura no fémur após uma queda, até à sua morte.

É um livro muito bom, com muitas passagens dolorosas... mas reais.

A sua morte revela-nos a sua singularidade única; torna-se do tamanho do mundo que desaparece com a sua ausência, que a sua presença fazia existir; parece-nos que o ente querido deveria ter ocupado mais espaço na nossa vida; no limite, todo o espaço. Tentamos libertar-nos desse abismo; era só um indivíduo entre tantos outros. Mas como nunca fazemos por ninguém tudo o que poderíamos (...) resta-nos ainda censurarmo-nos por muitas razões.

A edição é da Cotovia e, infelizmente, com o fecho permanente da editora tornou-se mais difícil arranjar esta coleção, mas ainda se consegue encontrar em sites de venda de livros online e em alfarrabistas. A minha edição veio de um alfarrabista e tinha flores secas nalgumas páginas.

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The kissing of kissing: o livro da poeta autista Hannah Emerson

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Descobri os poemas de Hannah Emerson através do blog The Marginalian. Hannah é uma poeta autista e não-verbal que, como se pode ver, não é sinónimo de não comunicar. Decidi ler o seu livro de poemas «The kissing of kissing» que está disponível no Everand (antigo Scribd) (é um serviço de subscrição que dá acesso a ebooks e audiobooks).

Please love poets we are the first autistics. Love this secret no one knows it.

É um livro curtinho, que se lê muito bem e, pessoalmente, gostei muito do ritmo dos poemas e da repetição de palavras.

Please try to go
to hell frequently
because you will
find the light there

yes yes — please
try to kiss the ideas
that you find there
yes yes — please

try to get that
it is the center
of the universe
yes yes — please

try to help yourself
by kissing the hot hot
hot life that is born
there yes yes — please

try to yell in hell
yes yes — please
try to free yourself
by pouring yourself

into the gutter all
guttural guttural yell
yes yes yes — please
try to get that you

become the being
that you came there
to be yes yes — please
try to go to the great

great great fire that you
created because you
become the light
that the fire makes

inside of you
yes yes — please
try to kiss yourself
for going there

yes yes — please
get that you are
reborn there
yes yes — please

begin your day

Mafalda de Quino

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Quando era miúda, roubava sempre o jornal ao meu pai para ler a tira de Calvin and Hobbes. Mais tarde, comprei os livros, li uma boa parte das tiras e, por isso, as tiras da Mafalda passaram-me um bocadinho ao lado, até agora.

Decidi aproveitar esta reedição de «O indispensável da Mafalda» que tem tiras divididas por vários temas (a família, o bairro, assim vai o mundo, a escola, a sopa, as férias, a TV e alguns personagens do universo da Mafalda) e uma entrevista com Quino, no final.

Mafalda nasceu de forma improvisada na vida de Quino. Foi convidado a fazer um cartoon que ia servir de publicidade indireta para uma marca de eletrodomésticos. A ideia era usar uma família normal, uma casal com filhos a fazer uso dos produtos. As tiras foram rejeitadas. Mais tarde, Quino resgatou essas tiras chamando Mafalda à criança da família, uma miúda rabugenta e mal humorada mas muito perspicaz. As primeiras tiras datam de 1963 e Mafalda durou 10 anos.

Se no início as tiras só incluíam o núcleo familiar, mais tarde Quino foi improvisando e introduzindo um irmão, os amigos da Mafalda, o bairro, a escola, entre outros.

É uma delícia ler as tiras da Mafalda. Algumas são simplesmente engraçadas.

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Noutras tiras, que se focam mais em política e sociedade é honestamente surreal o facto de serem tão atuais:

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Duas novelas gráficas para ler: Blankets e O diário de Anne Frank

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Blankets de Graig Thompson - Este é um daqueles livros que provavelmente não teria lido se não o tivesse encontrado na biblioteca. As ilustrações são lindas, mas é um calhamaço de quase 600 páginas que custa uma fortuna, principalmente na versão em português. Assim, quando o vi na biblioteca, não podia perder a oportunidade de o ler.

Em Blankets, Graig conta-nos a sua infância e adolescência, incluindo o seu primeiro amor. A religião, e a relação de Graig com Deus e com a sua fé atravessa toda a história. Apesar dos seus pais serem muito religiosos, à medida que vai crescendo, as dúvidas de Graig sobre a sua fé vão aumentando. Gostei bastante desta história, e as cenas de Graig a viver o seu primeiro amor são incríveis, mas acho que não eram necessárias tantas passagens da Bíblia para transmitir as dúvidas de Graig com a sua fé.

O diário de Anne Frank de Ari Folman, David Polonsky e Anne Frank - O diário de Anne Frank marcou-me muito quando o li na adolescência. Desde então, já peguei neles muitas vezes para ler algumas passagens, mas tenho mais dificuldade em identificar-me com Anne do que quando li o diário com 13 ou 14 anos. Apesar disso, tinha as expectativas muito altas para este diário gráfico e fiquei muito surpreendida!

Adoro as ilustrações e o facto das páginas serem cheias de cor. Os autores optaram por manter alguns excertos de texto bastante generosos do diário, e acho que foi uma escolha muito acertada. A essência do diário são as palavras de Anne e fazia todo o sentido que elas estivessem, o mais possível, nesta novela gráfica.

Já tive a oportunidade de visitar a casa de Anne Frank e escrevi sobre isso aqui, uma experiência que não podia recomendar mais, onde podem também ver o diário.

Numa altura em que continuam a sair muitos livros sobre o Holocausto, mas que, cada vez mais, se parecem focar em romantizar o tema de alguma forma (romances de pessoas a apaixonarem-se em campos de concentração.... a sério?), é ótimo que a história de Anne continue a ser lida e ouvida, e que vá ao encontro de novas gerações de leitores.

A minha família e outros animais de Gerald Durrell: a vida de uma família britânica em Corfu

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Já escrevi aqui sobre uma das minhas séries preferidas, os Durrell, a história de uma família (uma mãe viúva e quatro filhos) que se mudou de Inglaterra para a ilha de Corfu, na Grécia, em 1933.

A história é real e foi descrita pelo filho mais novo, Gerald Durrell na trilogia de Corfu, sendo que o primeiro livro tem o título genial de «A minha família e outros animais» e é o único que está traduzido em português.

Enquanto a série tem um tom mais novelesco e se foca mais nas aventuras da família na ilha, o livro é mais focado na paixão de Gerry pelos animais e no facto de ter transformado a casa da família num autêntico jardim zoológico com as espécies que colecionava.

É difícil não rir quando, por exemplo, Gerry deixa acidentalmente escapar uma família de escorpiões para a mesa de jantar, ou duas pegas curiosas decidem entrar no quarto de Larry e, num ato de vingança por nunca poderem entrar no quarto, destroem todos os seus documentos, sendo que Larry é escritor e os documentos fazem parte do livro que tenta escrever à máquina. Ou quando Gerry arranja uma gaivota tão grande que parece um albatroz e ela se esconde debaixo da mesa de jantar e decide bicar todos os convidados à medida que se vão sentando.

Além das descrições da vida natural da ilha, há uma série de personagens peculiares de Corfu que tornam o livro muito rico. Como diz Gerald na introdução:

Viver em Corfu foi como fazer parte de uma das mais divertidas e grotescas óperas cómicas.

É um livro incrível que recomendo a todos os que gostem de natureza e vida selvagem. A edição portuguesa faz parte da colecção infanto-juvenil da presença que também inclui as edições do Harry Potter, mas é um livro para todas as idades. A série está disponível na Apple, mas também já passou na RTP.

O ano do pensamento mágico de Joan Didion

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A vida modifica-se rapidamente.

A vida modifica-se num instante.

Sentamo-nos para jantar e a vida, como a conhecemos, acaba.

São estas as frases que dão mote ao livro «O ano do pensamento mágico» de Joan Didion, um livro que se tornou um dos mais conhecidos sobre o luto.

Uns dias antes do Natal de 2003, a filha de Joan Didion e do também escritor John Gregory Dunne adoeceu com uma pneumonia. Uns dias depois, John sofre um acidente coronário fatal. A filha do casal acaba por morrer uns meses depois de ter adoecido. Por isso, este é um livro duro sobre perda e sobre como lidar com a perda numa sociedade que procura, cada vez mais, evitar todo e qualquer tipo de sofrimento.

Philippe Ariès (…) observava que, com início por volta de 1930, se verificara na maioria dos países ocidentais e especialmente nos Estados Unidos uma revolução nas atitudes aceites perante a morte. «A morte», escreveu ele, «tão omnipresente no passado que era familiar, será apagada, desaparecerá. Tornar-se-á vergonhosa e proibida.»

Também Caitlin Doughty, no seu livro sobre como diferentes países lidam com a morte, explora esta ideia de que os países ocidentais se foram afastando cada vez mais da morte.

«O socioantropólogo inglês Geoffrey Gorer, descrevera esta rejeição do luto público como resultado da crescente pressão de uma nova «obrigação ética do prazer», um novel «imperativo de não fazer nada que possa diminuir o prazer dos outros».

(...)

O luto visível lembra-nos a morte, que é interpretada como antinatural, como uma incapacidade de gerir a situação.

Não só, mas também, com o crescimento das redes sociais, o que partilharmos uns com os outros tornou-se cada vez mais uma espécie de montra inspiracional. Mostrar refeições caras, viagens incríveis, momentos de descanso, prazer e felicidade tornou-se a norma. Cada vez mais, momentos tristes só cabem na esfera privada.

No seu livro «Wintering» (ou «Reiniciar» em português), Katherine May escreve sobre a pressão para transformarmos qualquer tipo de sofrimento em conteúdo inspiracional, e o mais rapidamente possível. 

Misery is not an option. We must carry on looking jolly for the sake of the crown. While we may no longer see depression as a failure, we expect you to spin it into something meaningful pretty quick. And if you can't pull that off, then you'd better disappear from view for a while. You're dragging down the vibe.

É sobre a depressão, mas podia ser sobre o luto, ou sobre qualquer outro tipo de sofrimento.

Que só então estivesse a iniciar o luto, foi coisa que não me ocorreu.

Até ali, só fora capaz de sofrer, não de andar de luto. Sofrer era um acto passivo. Sofrer acontecia. O luto, o acto de lidar com o sofrimento, exigia atenção.

Se, por um lado, vivemos numa sociedade em que o sofrimento se reserva cada vez mais para a esfera privada, por outro, também vivemos na era da produtividade, em que temos cada vez menos tempo para experienciar o sofrimento. Processar uma morte, uma separação, uma doença, um diagnóstico inesperado, o que for, exige um tempo que, muitas vezes, simplesmente não temos.

Mas temos música! No seu último álbum, «Subtract» Ed Sheeran conseguiu o facto muito pouco trendy de escrever um álbum inteiro sobre o luto (após a morte de um amigo) e a depressão. No documentário «The Sum Of It All» (Disney plus), Ed Sheeran fala bastante sobre como a experiência do luto significa o fim da juventude e sobre tudo o que levou à escrita destas músicas.