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Livros, viagens e tudo o que nos acrescenta

Pequenos fogos em todo o lado de Celeste Ng

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Comecei a ler «Pequenos fogos em todo o lado» sabendo muito pouco da história. O livro começa pelo fim. Um incêndio numa casa de família, ateado com vários pequenos fogos em todo o lado numa comunidade de Shakers.

Não sabia, mas os Shakers foram uma seita cristã fundada em Inglaterra no séc. XVIII. Neste caso, os criadores da cidade onde se passa esta história inspiraram-se nos seus princípios de perfecionismo e ordem. Uma comunidade utópica onde todas as pessoas seguem as mesmas regras, sem desvios, todas as casas são iguais, habitadas por famílias semelhantes com empregos dentro da norma.

Shaker Heights, apesar do seu idealismo, era um lugar pragmático, e ela não sabia como ser diferente. Uma vida inteira de reflexões práticas e confortáveis abateu-se sobre a centelha dentro dela como um cobertor espesso e pesado.

Além da obsessão pela ordem, o mais interessante que descobri sobre os Shakers é que priorizaram a igualdade de género, com muitas mulheres em cargos de poder dentro da comunidade. E estamos a falar de comunidades do séc. XVIII!

É para esta cidade que se mudam uma mãe fotógrafa e a sua filha adolescente. A história desenrola-se deste ponto até ao incêndio com o ritmo de uma série. Somos acostumados aos poucos com as personagens e o mistério vai-se adensando, deixando-nos incapazes de pousar o livro sem saber como chegámos ao incêndio da primeira página.

O incêndio marca todo o livro, literal e metaforicamente, já que a autora parece brincar com os personagens da mesma forma, criando pequenos fogos nas suas relações que o leitor fica a ver arder ao longo das páginas.

Todos nós fazemos coisas que lamentamos de vez em quando e que teremos de levar para sempre dentro de nós.

Foi uma grande surpresa este livro, que não foi nada do que esperava, mas que recomendo muito. É apenas o segundo livro da autora (podem ver aqui a entrevista que deu ao público) e está a ser adaptado para uma mini-série.

Frida Kahlo: uma exposição de fotografia

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Confesso que não sabia muito sobre Frida Kahlo até ter decidido ir ao Porto ver a sua exposição de fotografia. Conhecia os seus auto-retratos mas pouco sabia sobre a sua vida. Não sabia que quando tinha apenas seis anos, Frida sofreu de poliomielite, que a deixou com uma perna mais curta do que a outra e a coxear. Os vestidos compridos que usava tornaram-se uma forma de disfarçar isso. E com 18 anos, o autocarro escolar onde seguia colidiu com um elétrico e Frida sofreu mais de 20 fraturas. Passou cerca de um ano de cama e foi aí que começou a pintar os seus quadros.

Ao longo da vida, Frida teve mais de 30 cirurgias e toda a sua vida foi marcada pela dor, desde ter sofrido vários abortos, até ter perdido a sua mãe com cancro. Casou com Diego Rivera, mas nem aí as coisas foram tranquilas. Os dois acabaram por se divorciar e por casar novamente e ambos tiveram amantes.

Tanto a sua relação amorosa conturbada quanto a dor física que durou toda a sua vida (sofreu a amputação da perna direita em 1953 com 46 anos e morreu no ano seguinte) serviram de matéria para as suas pinturas.

Ainda assim, talvez o mais extraordinário sobre a sua vida seja a referência constante das pessoas que a conheciam à sua alegria de viver. Frida vivia constantemente, 24 sobre 24 horas com níveis de dor física difíceis de imaginar mas pintava, muitas vezes deitada na cama, viajava, juntava-se com amigos e familiares e mantinha uma série de animais exóticos que apareciam nas suas pinturas. Viveu até ao último dia da sua vida e não há melhor vingança (para as coisas más da vida) do que essa.

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Esta é uma exposição que não podem mesmo perder. Está no centro português de fotografia do Porto até ao dia 4 de Novembro.

As vozes de Chernobyl

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«Vozes de Chernobyl» é um livro que vai muito além da não ficção, são relatos na primeira pessoa das vozes de Chernobyl, das pessoas que, de uma ou outra forma, têm aquele marco na sua vida. Uma fissura. Antes de Chenobyl (felicidade, amor) e depois de Chernobyl (dor, morte, sofrimento).

 

Foi a ler este livro que percebi que desconhecia quase tudo sobre Chernobyl, pelo menos desconhecia o mais importante. A antiga União Soviética tentou esconder o incidente, mentiu às pessoas que viviam na zona sobre o que se tinha passado. Não lhes falou da radiação. Até que os trabalhadores de uma central na Suécia perceberam pelo seu detetor de radiações que algo estava errado e alertaram a comunidade internacional. Moscovo negou. Depois admitiu que Chernobyl tinha acontecido. Por causa destas mentiras (e de tudo o que fizeram para as encobrir) ainda hoje não é claro quantas pessoas morreram. Há quem fale em 10.000, em mais ou em menos.

 

O certo é que o número de pessoas afetadas (que perderam alguém, que sofreram os efeitos da radiação, que ficaram sem casa) vai muito além disso. E são as histórias dessas pessoas que estão neste livro. No fundo, são as únicas que importam.

Não encontrei, não me cruzei com o homem tal como aparece nos livros. (...) O homem não é um herói. (...) O mecanismo do mal também funciona no apocalipse. Compreendi-o. Também vão bisbilhotar, lamber as botas dos chefes, salvar o televisor e o casaco de pele de astracã. E, antes do fim do mundo, o homem permanecerá o mesmo que é agora. Sempre.

O livro toma o tom de quem o conduz, por isso, apesar de ser no geral triste e dramático tem momentos mais leves e de humor:

«Quem quer maçãs? Maçãs de Chernobyl!» Alguém aconselha: «Ó mulher, não digas que são de Chernobyl, que ninguém tas compra.» «Não se preocupe! Então não compram! Há quem compre para a sogra, há quem compre para o chefe.»

A autora ganhou (muito merecidamente) o prémio Nobel em 2015. Tem vários livros publicados que seguem este estilo que ela própria criou. Faz centenas de entrevistas e um trabalho de edição extenso para as “vozes” das pessoas falarem diretamente com o leitor.

 

Não sei qual é a conclusão para este texto. Talvez porque Chernobyl é uma página da história em aberto. Um capítulo que começou naquele dia e dificilmente se fechará. Pesquisar na internet sobre Chernobyl assusta. Não só porque as imagens (que valem mais do que mil palavras) são chocantes. Mas porque rapidamente se percebe que ainda se desconhece tudo, os efeitos da radiação a longo prazo e o número de pessoas afetadas. O certo é que Chernobyl é uma peça da história que não podemos esquecer, quanto mais não seja, porque não estamos (infelizmente) livres de que se possa voltar a repetir.