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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

A Coreia do Norte pelo olhar de Hyeonseo Lee

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Hyeonseo Lee e a mãe tinham acabado de levantar dinheiro num multibanco. Era o primeiro dia da mãe na Coreia do sul. Para trás, tinha ficado a vida na Coreia do Norte. Hyeonseo avança pela rua e repara que a mãe ficou para trás, parada a olhar o multibanco.

“Nunca poderia imaginar uma coisa destas - foi o seu comentário.

Pensou que lá atrás, escondido dentro da parede, estava um caxeiro muito pequenino que contava as notas a uma velocidade vertiginosa.

- Coitado, preso ali dentro sem ter uma janela.

Omma (mãe), é uma máquina.”

Lee contou esta história, entre muitas outras, no National Geographic Summit. A plateia riu-se.

“Tem graça, sim. Eu também me ri. Mas esta história mostra que sair da Coreia do Norte não é como sair de qualquer outro país. É como passar de um universo para outro. Por muito longe que vá, nunca me sentirei totalmente liberta."

A ativista continua, num inglês com sotaque forte, a contar a sua história. Gostei tanto de a ouvir que não resisti a comprar o livro de memórias que escreveu "A mulher com sete nomes". A primeira surpresa chegou logo nas primeiras páginas. Lee conta a história de como os pais se conheceram numa viagem de comboio, de como se apaixonaram e de como um amor inicialmente proibido pelos pais de ambos acabou por vingar. A história não podia ser mais banal. É só a narrativa mais recorrente de todos os filmes, músicas e peças de teatro românticas desde sempre. Pelos vistos, até na Coreia do Norte.

O livro está dividido em três partes. Hyeonseo começa por narrar a infância e adolescência vividas na Coreia do Norte, que termina com a fuga para a China, onde passa longos e penosos anos a viver ilegalmente e, por fim, a sua vida livre na Coreia do sul.

Desde a sua entrada na escola primária que Hyeonseo, assim como todos os norte-coreanos, é ensinada a seguir todas as normas do regime. Venerar o grande líder, odiar os norte-americanos e pôr de lado a individualidade em nome do bem comum. Mais do que isso, é na escola que as crianças aprendem a vigiar-se umas às outras e a criticar alguns comportamentos menos corretos dos colegas o que, no futuro, os tornará denunciadores dos seus próprios vizinhos, familiares e amigos.

Não nos era permitido ter ideias próprias, nem discutir ou interpretar qualquer assunto.

Hyeonseo vê coisas terríveis nos anos 90 quando a fome atinge o país em força. Mas é, apesar de tudo, privilegiada porque a sua família tinha rendimentos acima da média. Foge para a China mais por curiosidade, do que por necessidade. Quer ver o mundo para lá da escuridão da Coreia do Norte. Já tinha ideia, antes de ler o livro, que a China deportava os norte-coreanos para o seu país de origem onde são executados ou levados para campos de concentração. Ainda assim, não deixa de ser chocante o trabalho a que se dão para os encontrar e a forma fria e insensível como o fazem. Hyeonseo descobre que a vida como fugitiva na China não é melhor do que a vida na Coreia do norte.

Por fim, Hyeonseo consegue ir viver para a Coreia do Sul. No entanto, a adaptação a uma vida de liberdade como refugiada norte-coreana é bem mais difícil do que pensara.

Mesmo para aqueles que lá sofreram horrores inimagináveis e conseguiram fugir ao inferno, a vida no mundo livre pode ser tão difícel que se vêem obrigados a lutar com denodo para se adaptarem e serem felizes. Alguns, poucos, desistem e optam por regressar para aquele mundo de trevas, como eu me senti inúmeras vezes tentada a fazer.

A certa altura da palestra no evento da National Geographic Hyeonseo confessa saber que o governo norte-coreano está atento ao que faz e que já apareceu referida no canal oficial do governo como uma inimiga. Acha que não pode tomar a vida como garantida. Continua a dar palestras e a contar a sua história para fazer passar a mensagem de que, além da questão das armas nucleares, é preciso falar dos direitos humanos dos norte-coreanos. A liberdade é (devia ser) um direito humano fundamental.

 

Deixo aqui a TED talk que deu origem ao livro e ao trabalho de Hyeonseo Lee como ativista:

As histórias do National Geographic Summit

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O ano passado fui ao National Geographic Summit para ouvir Jane Goodall e acabei surpreendida com a palestra de Jodi Cobb. Na quarta-feira passada, e sem nenhum orador que quisesse tanto ouvir como Jane Goodall, entrei no Coliseu dos Recreios sem expectativas.

O que se seguiu foi um dia inteiro de aprendizagem sobre temas que vão desde o espaço aos conflitos na Terra, desde a vida selvagem do Okavango em África até uma plantação de cocaína no Perú (mais sobre isto em baixo). No fundo, este Summit é uma experiência de imersão naquelas pessoas e histórias extraordinárias que vemos nos documentários e nas TED talks. Uma experiência que pode ser resumida por este verso de Sophia de Mello Breyner dito ao início da manhã:

Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.

I. Precisamos de mais inclusividade e não de elitismo

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No dia em que Terry Virts, astronauta norte-americano, entrava na nave para o seu primeiro voo espacial, havia homens armados com armas militares. Estariam a proteger a nave de eventuais terrorisas, pensou Terry. Na verdade, descobriu mais tarde, que estavam lá para garantir que os astronautas embarcavam.

Terry passou 200 dias no espaço, a dividir o seu tempo entre as (muitas) horas de trabalho mundano fechado na nave e as paisagens extraordinárias da Terra. Trabalhou numa equipa que misturava norte-americanos, russos e uma italiana quando, na Terra, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia preenchia as páginas dos jornais. Foi essa uma das suas maiores aprendizagens. Que americanos e russos podem trabalhar juntos, independentemente de questões políticas. Mas Terry, na sua palestra, não consegue fugir da política. De noite, perantes as paisagens da Terra em que as cidades aparecem iluminadas, África é uma mancha enorme de escuridão. Aquilo que poderia ser belo é, na realidade, uma marca da diferença entre os que têm muito (demasiado) e os que não têm nada. Terry conclui, sublinhando que precisamos de mais inclusividade, e não de políticas que promovem só elites.

II. Tentemos encontrar sempre um pouco de nós nos outros

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Fiquei surpreendida quando Mariana subiu ao palco do Coliseu e falou em português. Abordei o Nat Geo Summit como qualquer outra coisa em que quero ser surpreendida - manter as expectativas baixas. Não li nada sobre os oradores, à exepção dos nomes e da profissão. Não sabia, por isso, que Mariana Van Zeller era portuguesa. Estudou relações internacionais em Lisboa e trabalhou na sic notícias. Queria ser jornalista o que a levou a candidatar-se à Universidade de Columbia em Nova Iorque. Foi rejeitada. Tentou novamente. Foi rejeitada. À terceira, Mariana decidiu ir até Nova Iorque conhecer o diretor da Universidade. E sim, nesse ano foi aceite. Estávamos em Agosto de 2001 e, escassas semanas depois, Mariana estava a cobrir o 11 de Setembro para Portugal.

Anos depois, Mariana foi viver para a Síria. A guerra no Iraque tinha começado e, como jornalista acabada de se licenciar, queria estar perto do conflito. Descobriu que havia sírios a atravessar a fronteira para o Iraque para combater o exército norte-americano e foi investigar com a ajuda de um sírio que aceita denunciar a situação. Às tantas, Mariana explica à plateia que ele lhe fez uma serenata. A música "My heart will go on" da Céline Dion começa a tocar no Coliseu. A plateia ri-se. Mas não só, explica Mariana. Ele também sabia de cor todas as falas do Titanic. Foi aqui que Mariana percebeu o tipo de jornalismo que queria fazer. Com menos julgamentos e mais empatia.

 

III. Comprei uma plantação de cocaína no Perú

Charlie Hamilton James in burning rainforest. Acre

É fácil gostar de Charlie. Aliás, diria que é impossível não gostar de Charlie. É fotógrafo de vida selvagem e tem um talento natural para falar em público. Com um sentido de humor que prende a plateia. A história do título foi uma das muitas que partilhou. Há alguns anos atrás, Charlie comprou uma porção de terra no Parque Nacional Manú, no Perú, com o objetivo de o proteger. Estava longe de imaginar que o terreno tinha, na realidade, uma plantação de cocaína. Era também a casa de muitos trabalhadores que cortavam, ilegalmente, árvores da floresta cuja madeira era depois exportada para fazer, por exemplo, caixões e mobília. Charlie queria os trabalhadores fora das suas terras. Foi conhecê-los, passar algum tempo com eles e percebeu que o que os motivava no trabalho ilegal era algo tão simples quanto a necessidade de sustentar as famílias com o que tinham à disposição.

Vamos a estes sítios e procuramos perceber o quão diferentes somos, mas o que realmente acabamos por descobrir é o quão semelhantes somos.

 

IV. Não podemos olhar a natureza a partir de cima porque somos parte dela

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Adjany Costa é angolana e subiu ao palco para contar uma daquelas histórias que me deixam, por um lado, cheia de inveja e, por outro, muitíssimo feliz por não estar no lugar dela. Eu explico. Adjany participou no Okavango Wilderness Project, um projeto da National Geographic para investigar a vida selvagem do Okavango, uma zona ignorada durante décadas por causa da Guerra. Para a expedição, uma equipa de cientistas percorrer quilómetros a pé e de canoa, a viver sem nada, no meio do nada, durante meses. Sujeitos a tudo. Adjany chegou mesmo a ser atacada por hipopótamos e elefantes. A prova de que a natureza pode ser tanto extraordinária quanto implacável. A lição que tirou foi que, quando estamos no espaço deles, os animais olham para nós como outros animais e não como seres superiores. Quer queiramos ou não, fazemos parte da natureza. Já dizia Stephen Hawking que:

Somos apenas uma raça avançada de macacos num planeta pequeno de uma estrela banal. Mas conseguimos compreender o Universo. Isso torna-nos muito especiais.

V. Os oceanos são o coração azul do nosso planeta

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Sylvia Earle foi, merecidamente, a última a subir ao palco para fechar a conferência. É apresentada como a figura máxima da conservação dos oceanos e não é para menos. Tem milhares de horas passadas debaixo de água no currículo, que começaram há 60 anos atrás. Sim, porque Sylvia tem 82 anos e continua a mergulhar com a mesma paixão de sempre. A mesma paixão com que fez esta TED talk sobre a proteção dos oceanos e o documentário Mission Blue para a netflix. A mesma paixão com que fala à plateia do Coliseu dos Recreios sobre a urgência de conservar os oceanos.

A palestra de Sylvia não é muito diferente da de Terry, no sentido em que ambos dão a conhecer sítios que a maioria de nós nunca vai explorar - o espaço e o oceano profundo. Outra semelhança é que, se podemos conhecer um bocadinho do espaço através de fotografias tiradas por sondas e astronautas, conhecemos um bocadinho do oceano sempre que lá mergulhamos. Como Sylvia disse se há coisa transversal na Terra, é a alegria que sentimos ao mergulhar no mar. A diferença é que não precisamos do espaço para viver na Terra, mas precisamos dos Oceanos. E, apesar disso, gastamos muito mais dinheiro, recursos e energia a conhecer o espaço do que a conservar os oceanos. Sylvia quer mudar isso.

P.S. - Falta uma história neste post, a de Hyeonseo Lee, norte-coreana, que fica para a próxima publicação.

Siddhartha de Hermann Hesse: temos mesmo de viver

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Confesso que não sabia quem era Hermann Hesse até há muito pouco tempo. O autor alemão ganhou o prémio Nobel da Literatura em 1946 e, entre os vários livros que escreveu, Siddhartha é dos mais conhecidos. Neste livro, Siddhartha, nascido na Índia e filho de um brâmane, percorre uma longa viagem existencial, experimentando de tudo um pouco em busca da paz espiritual.

O personagem procura a felicidade nestes dois extremos: primeiro entregando-se à doutrina budista e vivendo sem nada e depois, renunciando à mesma e entregando-se a uma vida de trabalho e prazer e, no fundo, ao mundo capitalista e ocidental. Vive tudo isto para descobrir que a felicidade não está em nenhum dos extremos e decidir-se pelo equilíbrio entre estes dois mundos.

Entre as muitas mensagens do livro, talvez esta nem seja a mais importante, mas é a que me fez mais sentido. Temos mesmo de viver. Não contam as opiniões dos outros nem a sua experiência. Não tanto, pelo menos, como a nossa própria opinião e a nossa própria experiência. Temos de viver as coisas, de cometer os erros, de bater com a cabeça na parede, para encontrarmos o nosso próprio caminho.