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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

A arte de roubar tempo

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Foi num vídeo do youtube que vi esta ideia e fez-me todo o sentido. Basta ir ao medium para ver a quantidade de textos que se escrevem sobre produtividade, gestão de tempo, bullet journal e organização. Já li alguns destes textos e confesso que nunca segui nada. Sou organizada mas não consigo ter tudo planeado até ao minuto porque isso mata um bocadinho a vontade própria, o que nos apetece mais (ou menos) fazer naquele dia ou naquela hora.

 

Gostei mais desta ideia de roubar tempo. De roubar dez minutos à noite para ler um livro, ou para escrever o rascunho de um texto, de roubar trinta segundos para anotar uma ideia nas notas do telemóvel, tirar duas horas depois de um exame difícil para ir ao cinema. Quando nos apetece, quando podemos e quando a vontade ou a inspiração assim o dita.

 

E é mesmo preciso roubar tempo a outras coisas para fazermos aquilo de que gostamos. No livro «Roube como um artista», o autor Austin Kleon resume que:

Se você tem duas ou três paixões, não sinta como se precisasse escolher entre elas e ficar com uma. Não descarte. Mantenha todas as suas paixões na sua vida.

Austin explica que, quando desistimos de um hobby sentimos uma espécie de dor de amputação. Aquela dor do membro fantasma que persiste mesmo depois do membro ter sido amputado. Para Austin, desistirmos de um hobby causa uma certa sensação de que nos falta alguma coisa, apesar de termos dificuldade em perceber exatamente o que é, enquanto mantermos tempo (eu diria mais roubarmos tempo) para as nossas paixões nos deixa mais felizes.

Trevor Noah nasceu um crime e tem uma história para contar

Foi há quase três anos que passei duas semanas na África do Sul. É muito pouco tempo para um país tão diversificado mas, de tudo o que me ficou dessa viagem, as marcas de Mandela foram o mais impressionante.

Vamos recuar, eu tinha 17 anos quando fiz um trabalho sobre a vida de Mandela, li sobre a luta que travou, os anos que passou na prisão, a rotina dura que criou e sei (quase) de cor muitos versos do poema que lia todos os dias para aguentar até ao dia seguinte. Saiu como entrou, 27 anos depois, mas de cabeça erguida. Sem amarguras, sem baixar os braços.

Quando estive na África do sul vi traços duros do apartheid em tudo, na pobreza dos negros (empregados) e na riqueza dos brancos (patrões), nas notícias de jornal sobre as escolas em que as crianças das tribos ficam numa sala e as crianças brancas noutra, aprendendo línguas diferentes, sendo preparadas para vidas e futuros diferentes. Mandela fez muito pela África do sul mas o caminho continua a ser longo. E continua depois da morte dele porque ele ainda lá está, nos graffitis desenhados nas paredes, em fotografias espalhadas nas casas das favelas, no sorriso rasgado das crianças quando se diz o seu nome.

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Mas, o livro. Talvez conheçam Trevor Noah por ser um dos comediantes do Daily Show, nos Estados Unidos. Trevor nasceu durante o apartheid, filho de mãe negra e pai suíço, a sua mera existência era a prova do crime dos pais (daí o título Born a crime). Por isso, o livro começa com esta mensagem tornada lei.

IMMORALITY ACT, 1927
To prohibit carnal intercourse between Europeans and natives and other acts in relation thereto.

A história parece dramática (e é) mas Trevor conta-a como só um (bom) comediante poderia fazer, expondo o ridículo das situações. É isso que faz, por exemplo, com a mensagem acima, o quão ridículo é pensarmos que negros e brancos não se vão juntar só porque há uma lei que os impede de o fazer?

Don’t fight the system. Mock the system.

Esta ideia, que é repetida várias vezes ao longo do livro foi o que mais gostei. De certa forma, fez-me lembrar os sem forma do Harry Potter. Quem conhece a história talvez se lembre que estas criaturas se escondiam em lugares escuros e tomavam a forma dos maiores medos de quem o encontrava. Para os fazer desaparecer, era preciso ridicularizar aquilo de que se tinha medo. Trevor faz isso mesmo. Quando ridicularizamos um sistema, como o apartheid, estamos a expor as suas fraquezas. Mas mais do que isso, estamos a tirar-lhe peso, a dar-lhe uma dimensão mais humana e com a qual conseguimos lidar.

Além da graça com que partilha as suas histórias de infância e adolescência, vividas maioritariamente com a mãe, Trevor tem uma noção de política e de justiça difícil de conciliar. Que vem daqui. De ter nascido no meio do apartheid, no meio da pobreza e de ter conseguido romper esse ciclo e se ter tornado um comediante a viver nos Estados Unidos.

In society, we do horrible things to one another because we don’t see the person it affects. We don’t see them as people. Which is the whole reason the hood was built in the first place, to keep the victims of apartheid out of sight and out of mind. Because if white people ever saw black people as human, they would see that slavery is unconscionable.

 

Não sei se este livro, publicado em 2016, vai ser editado em Portugal mas espero que seja, porque duvido que haja outro semelhante, onde um comediante conta uma história tão importante com tanta leveza e sentido de humor. Além disso, este livro está cheio de frases para sublinhar e guardar para a vida, como esta:

I don’t regret anything I’ve ever done in life, any choice that I’ve made. But I’m consumed with regret for the things I didn’t do, the choices I didn’t make, the things I didn’t say. We spend so much time being afraid of failure, afraid of rejection. But regret is the thing we should fear most. Failure is an answer. Rejection is na answer. Regret is na eternal question you will never have the answer to. “What if…” “If only…” “I wonder what would have…” You will never, never know, and it will haunt you for the rest of your days.

 ***

Ainda sobre livros, escrevi um post para o Delito de opinião sobre o fecho das livrarias de rua, que podem ler aqui.

Eu, Tonya e a vantagem de querermos ser muitas coisas

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Desconhecia a história de Tonya Harding. Afinal, passou-se em 1994 e eu tinha nascido apenas um ano antes. Mesmo depois de ver o trailer pareceu-me que a história não teria grande interesse. Mas decidi ver o filme e ainda bem. Desta época de óscares foi, a par com «The Florida project» (vejam, que é maravilhoso) um dos meus preferidos.

 

O filme foca-se na biografia de Tonya Harding, patinadora norte-americana, desde a infância conturbada até ao incidente que a levou a ser afastada das competições. O ponto forte do filme é a montagem e a forma como a história é contada, diretamente ao espectador (algo que penso nunca ter visto no cinema, a não ser em documentários) e sob o ponto de vista das diferentes personagens.

 

Gostei muito do filme, mas tive pena que não tivessem dado mais ênfase ao momento em que, imagino, Tonya fica sem chão. Quando, depois de anos e anos a treinar para a patinagem no gelo e, de certa forma, para provar à mãe que estava enganada quando lhe dizia que ela nunca seria ninguém, lhe dizem que está banida para a vida do mundo da patinagem. Tudo sem que Tonya tivesse, aparentemente, alguma coisa a ver com o assunto (o que também é discutível visto que o filme não dá uma resposta clara).

 

A vida de Tonya girava à volta da patinagem e, de um momento para o outro, tudo mudou. Lembro-me de ser miúda e ter uma certa inveja dos meus colegas que respondiam sem qualquer hesitação à pergunta: “O quê que queres ser quando fores grande?”. Não percebia (e ainda não percebo) como é que alguém pode querer ser apenas uma coisa, no meio de tantas possibilidades. Apesar disso, sempre achei que ter um só foco era uma grande vantagem. Foi a ver este filme que percebi que talvez não seja. Se queremos ser muitas coisas e nos tiram o chão para uma delas, não faz mal. Haverá sempre muitos caminhos para percorrer.