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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

Mar casado e ilha dos arvoredos (Guarujá, Brasil)

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É uma história bonita, repetida vezes sem conta por estas paragens. Na praia do mar casado, quando a maré vaza, formam-se duas praias. Quando a maré enche, as águas juntam-se, casam e formam uma ilha que os urubus e fragatas adoram sobrevoar.

Mas a praia do mar casado é muito mais do que isso. É aqui que, ao fim-de-semana as pessoas enchem o areal. Estendem as toalhas na areia, trazem cadeiras e lancheiras e ficam todo o dia com raízes na praia. Deixa de haver um único espaço onde não haja grupos de pessoas a ouvir a Marília Mendonça pela centésima vez naquele dia e a aproveitar a água de coco, a tapioca e o açaí das muitas barraquinhas que enchem o areal.

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Açaí

A primeira vez que provei açaí resultou nesta conversa:

- E aí, sê não gostou de açaí?

- Não sei, é estranho.

- Sê não sabe se gostou?

- É... estranho.

Desde o meu primeiro dia no Brasil que pergunto a toda a gente "O quê que eu devo provar por aqui?". A resposta era sempre a mesma: "açaí!". Este momento era seguido de uma expressão algo confusa da outra pessoa quando eu perguntava: "E isso sabe a quê?". Finalmente percebo a dificuldade de explicar que sabor é este.

Já voltei a provar açaí entretanto, mas ainda não vos sei dizer se gostei. Não tem um sabor semelhante a mais nada que tenha provado. O açaí é um fruto roxo que vem de uma palmeira da região da Amazónia. Tira-se a polpa e come-se na tigela (com fruta ou cereais) ou em forma de sorvete.

Há um estudo que diz que o sabor é uma mistura de vinho tinto com chocolate. Bom, a cor talvez seja. Mas o sabor é único e, à falta de melhor descrição, estranho.

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A ilha dos arvoredos

Desta vez, não vim ao mar casado pelos mergulhos nem pela confusão do fim-de-semana, nem pelo açaí (que não sei se quero voltar a provar) nem mesmo pela tapioca com nutella e leite condensado (uma delícia). É daqui que saem os "banana boats" para a ilha dos arvoredos. Ou seja, é aqui que as pessoas se sentam numa espécie de colchão insuflável puxado por um barco a motor e tentam não cair ao mar. Porquê? Não sei. Eu só quero ir ver a ilha mais de perto.

Tudo começou nos anos 60, quando o engenheiro Fernando Lee decidiu dedicar a sua vida a este lugar. Lee recebeu a ilha dos arvoredos para fins científicos e transformou-a numa ilha encantada. Encheu-a de espécies raras de animais e plantas, experimentou com energias alternativas, genética, e com tudo aquilo que lhe passou pela cabeça.

Como todos os bons personagens, teve os seus momentos de semi-loucura quando decidiu instalar na ilha um canhão, que disparava para saudar os visitantes, encher parte da ilha de estátuas de leões e colocar uma fénix gigante na entrada.

Foi para ver esta ilha de perto que vim, desta vez, até ao mar casado. Sentamo-nos num “banana boat” e dez minutos depois (sem quedas) paramos mesmo ao lado da ilha. O monitor do barco diz que podemos descer e nadar um pouco. Ninguém se mexe. Está calor mas estamos a mais de quilómetro e meio da praia, o mar está escuro e, mais importante que tudo, gelado. Nem quero saber, quero ver mais de perto a ilha.

Como em tudo, bastou uma pessoa saltar para todos os outros se lançarem à água. Está (ainda) mais fria do que imaginei. Nadamos até perto da ilha. O monitor avisa que não podemos subir. Não faz mal. Até daqui se percebe que é um pequeno paraíso. Uma verdadeira ilha tropical, com rochas cheias de vegetação e palmeiras. Olhando para o céu, vêem-se urubus, fragatas e muitas outras aves. Tomaram conta da ilha. Foi há uns anos que Lee morreu e a ilha dos arvoredos ficou ao abandono.

Não tirei fotografias mas aqui fica uma:

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Do mar, vêem-se resquícios do laboratório natural que Lee construiu. Há um elevador gigante que servia para subir à ilha, demasiado alta para atracar barcos. Há restos de passeios e de redes que serviam para estudar aves raras. Há um farol e algumas casas de pedra.

O frio da água começa a incomodar. Voltamos para o "banana boat" e minutos depois estamos de volta à praia. Ao longe, tudo o que ainda resta de Lee na ilha tropical parecem miniaturas, como as casas vistas de um avião. Daqui a uns anos a vegetação terá consumido tudo. A natureza está ali para nos lembrar que, no fundo, tudo lhe pertence.

Por aqui e por ali de Bill Bryson

Há dois tipos de pessoas no mundo. As que decidem percorrer um trilho selvagem (com ursos) e, numa livraria, passam ao lado de um livro sobre ataques de ursos e as que compram o livro, o devoram pela noite dentro e se demoram em cada detalhe da história de pessoas atacadas num sítio onde estão prestes a caminhar.

Bryson pertence ao segundo grupo. E ainda bem. É isso que faz de “A walk in the woods” (ou “Por aqui e por ali”, uma tradução cujo sentido me escapa) um dos meus livros de viagens preferido, até ao momento.

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Bill Bryson decide caminhar o Trilho dos Apalaches, que vai da Geórgia ao Maine, na costa leste dos Estados Unidos, com um amigo (Katz) que não vê há décadas. A contracapa da versão portuguesa resume bem esta aventura:

Enfrentando condições climatéricas extremas, insetos implacáveis, mapas pouco fiáveis e um companheiro instável, que acima de tudo gostava de ir para um motel ver os Ficheiros Secretos, é com grande esforço que Bryson percorre a natureza selvagem para conseguir realizar o sonho de uma vida: não morrer ao ar livre.

 

A decisão de caminhar na natureza selvagem é algo que me fascina. Já li Livre de Cheryl STraied onde ela caminha pelo Pacific Crest Trail, um trilho na costa oeste dos Estados Unidos e Into the wild de John Krakauer (este com um final trágico). Caminhar na natureza selvagem implica carregar com tudo aquilo de que se vai precisar durante semanas às costas (incluindo comida, tenda, saco-cama, roupa, enfim tudo), tomar banho em rios ou lagos (se o tempo o permitir, caso contrário implica não tomar banho) e, resumindo, não ter qualquer contacto com a civilização.

Se há algo que o Trilho dos Apalaches nos dá é a possibilidade de chegar ao êxtase com muito pouco, algo que nos daria bastante jeito na vida quotidiana.

 

Bryson vai descrevendo caminhadas por montanhas e florestas, em condições de neve e de calor. As descrições da caminhada e das conversas e aventuras entre os dois fizeram-me sempre rir. No entanto, arrisco-me a dizer que a melhor parte são todos os desastres que o autor imagina e que, felizmente, nunca chegam a acontecer. Estes envolvem pessoas comidas por usos negros (parece que os pardos são mais simpáticos), pessoas que se perdem e, em pânico, tomam decisões sem sentido que acabam por lhes custar a vida, ataques de hipotermia, assassinos em série, entre outros. Tudo o que possa correr mal num caminhada pela natureza selvagem acontece, pelo menos na imaginação de Bryson.

Resumindo, recomendo a leitura a quem estiver à procura de algo leve, que nos faz dar mais valor à natureza selvagem (e aos ursos que a habitam).

Uma manhã com Jodi Cobb

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Fui ao National Geographic Summit para ouvir Jane Goodall. Sabia que havia dois oradores antes dela, mas não pesquisei nada sobre eles. A primeira pessoa a subir ao palco foi Jodi Cobb. Jodi é fotógrafa da National Geographic há algumas décadas. Fala como quem tem o maior prazer em partilhar a sua história. E tem graça, muita graça. Vai mostrando fotografias das reportagens mais marcantes da sua carreira. Foi a primeira mulher fotógrafa a ser contratada pela National Geographic, a primeira a fotografar a China, a retratar a vida secreta das geishas no Japão, a primeira a fotografar as mulheres na Arábia Saudita (após obter autorização dos maridos), a primeira a fotografar diversas tribos em lugares recônditos.

Tornei-me fotógrafa porque queria mudar o mundo. Mas isso revelou-se mais difícil do que eu pensava.

 

Algures na passagem das fotografias, há uma imagem de Donald Trump. Foi tirada há muitos anos atrás quando era ele quem mandava nos concursos miss Universo. Trump está a entrar numa sala e as modelos reviram os olhos. A plateia ri-se.

 

Jodi passa para a fotografia seguinte e começa a falar de temas mais difíceis, quase impossíveis, como o tráfico humano. Jodi correu o mundo durante meses numa reportagem sobre o tráfico de pessoas. Quando regressou aos Estados Unidos percebeu que o tráfico humano também estava ali, junto à fronteira com o México, onde americanos atraem jovens mexicanas a passar a fronteira em promessa de trabalho, mas acabam como escravas sexuais. E nos campos agrícolas, onde muitos mexicanos acabam escravos dos seus patrões para saldar dívidas que nunca conseguirão pagar.

 

Às tantas penso que não é possível. Não é possível que uma pessoa que esteve meses a fio a retratar temas tão difíceis, tão desumanos, a entrevistar traficantes de pessoas, a viver com medo de represálias e a chorar todos os dias seja capaz de contar estas histórias, as suas histórias, com leveza e com graça. Mas Jodi Cobb é assim.

 

É verdade, fui ao National Geographic Summit para ouvir Jane Goodall mas saí fascinada com a graça e a resiliência da Jodi Cobb. Enfim, se não tirarem nada deste texto, fiquem com a frase que acompanhou Jodi ao longo de toda a sua vida.

O que posso fazer agora que nunca fiz antes?

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instagram de Jodi Cobb.

 

vídeo sobre a sua presença no Nat Geo Summit em Lisboa.

Uma manhã com Jane Goodall

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Há dois anos li um livro de Jane Goodall, de título “Reasons for hope”. Foi a minha introdução a Jane Goodall. Já conhecia partes da sua história, mas este livro é muito mais do que isso:

How healing it was to be back at Gombe again, and by myself with the chimpanzees and their forest. I had left the busy, materialistic world so full of greed and selfishness and, for a little while, could feel myself, as in the early days, a part of nature. I felt very much in tune with the chimpanzees, for I was spending time with them not to observe, but simple because I needed their company, undemanding and free of pity.

 

Há umas semanas fui ouvir Jane Goodall ao National Geographic Summit. O Tivoli estava cheio e nunca ouvi tanto silêncio num teatro com tanta gente. Jane tinha 27 anos quando viajou três semanas num barco rumo à Tanzânia para visitar uma amiga e acabou no meio da floresta do Gombé a estudar chimpanzés. Anos mais tarde percebeu que os chimpanzés podiam desaparecer e começou a viajar pelo mundo para alertar as pessoas para a sua conservação. Jane tem 83 anos. Fala com a paciência de quem conta a mesma história pela centésima vez, com o mesmo propósito e a mesma paixão de há tantos anos atrás.

 

Jane fala da sua infância no Reino Unido, de África, do que aprendeu com os chimpanzés e de como se desiludiu também, por afinal poderem ser tão violentos como os seres humanos. No final, Jane mostra um vídeo (este) onde é abraçada por um chimpanzé reabilitado e devolvido à natureza. Fala dos estragos que temos causado no planeta mas não quer terminar de forma negativa. No fim, Jane volta ao livro e partilha as suas razões para (ainda) acreditar no ser humano.

Each one of us matters, has a role to play, and makes a difference. Each one of us must take responsibility for our own lives, and above all, show respect and love for living things around us.

 

Voltei a pensar por estes dias naquela manhã passada no Tivoli. Pensei em Jane Goodall, para quem a decisão dos Estados Unidos de sair do acordo de Paris deve ser um duro golpe. Jane dedicou uma vida inteira a caminhar no sentido oposto (e para alguém com 83 anos é mesmo uma vida inteira!) Pensei no ambiente de admiração e de inspiração que se viveu no Tivoli naquela manhã que foi, certamente, uma das melhores experiências da minha vida.

We still have a long way to go. But we are moving in the right direction. If only we can overcome cruelty, to human and animal, with love and compassion we shall stand at the threshold of a new era in human moral and spiritual evolution—and realize, at last, our most unique quality: humanity.

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TED talk de Jane Goodall.

 

post no Brain Pickings sobre o livro "Reasons for hope".

 

Um post sobre o documentário "Before the flood" de Leonardo DiCaprio.