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Ler, escrever e viver

Ler, escrever e viver

As viagens e o medo

Quando decidi que ia dois meses para o Brasil a pergunta que mais ouvi foi “Não tens medo de ser assaltada?” Tinha, claro que sim. Também tenho medo de andar de avião (coisa recente que há uns anos adorava). Tenho medo de ter uma apendicite e ter de ir para um hospital que sei lá que condições é que tem. Tenho medo que haja um atentado terrorista. Tenho medo de mil e uma coisas, mas não deixo de viajar por causa disso.

É verdade que presenciei situações no Brasil (e tive conhecimento de outras) que dificilmente aconteceriam em Portugal e que não vale a pena referir. As notícias estão cheias disso. A vila mais próxima do fim do mundo onde vivia era uma favela e admito, com alguma vergonha, que sempre que fui abordada por alguém que me deixou apreensiva, foi sempre para oferecerem ajuda para alguma coisa ou algum conselho. Porque a verdade é essa. As pessoas são maioritariamente boas em todo o lado. E vale a pena viajar, nem que seja para comprovar isso.

perequê

Estou para escrever sobre este tema há algum tempo mas estava difícil arranjar as palavras certas para o fazer. Depois, vi este artigo sobre a revista Flow e percebi que alguém já escreveu o que penso sobre o assunto, muito melhor do que eu o conseguiria fazer:

I want to live. I don't want to not do things because they might end badly. I want to walk up to people and talk and laugh instead of being afraid of them. I want to get on a plane without formulating my goodbyes in my head. I don't want to be anxious. I want the inner peace that comes from trusting everything will be all right. And if it does happen to go wrong, then I'll deal with it when it does.

Para mim, não há nada na vida que se compare ao mundo de experiências e vivências que uma viagem oferece. A partir do momento em que deixamos de viajar por medo, estamos a privar-nos de muita coisa. Sinceramente, tenho mais medo de um dia olhar para trás e pensar que podia ter ido, que podia ter feito e não fiz, só porque o medo foi maior do que eu.

A graça da coisa de Martha Medeiros

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Se vos falar em Martha Medeiros talvez o nome não vos diga nada. Mas é provável que já tenham lido este poema maravilhoso que começa por Morre lentamente e cujos meus versos preferidos são:

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no trabalho, quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um sonho, quem não se permite, uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não ouve música, quem não acha graça de si mesmo.

Este poema tornou-se viral há uns anos atrás e por uma daquelas tiradas cruéis da internet foi atribuído erradamente a Pablo Neruda. Na verdade, pertence a esta cronista brasileira.

Quando viajo gosto sempre de comprar, pelo menos, um livro de um autor do país. O Brasil quase foi a exceção porque só me lembrei disso no aeroporto. A opção de escolha não era muita mas assim que reconheci a autora daquele poema na capa de um livro, nem pensei duas vezes.

Não sei do que estava à espera, mas não esperava o que encontrei. Parei a cada crónica lida para pensar nas palavras da autora, reli várias crónicas, fui lendo aos poucos para assimilar, pus post-its em dezenas de crónicas para depois tirar algumas passagens e acabei o livro maravilhada.

Esse meio todo

Há um tema recorrente ao longo de todas as crónicas, a vida, esse meio que está entre o nascimento e a morte e que nos levanta tantas dúvidas.

 “Vida é que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o que importa. (…) No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção: ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida toda, esse meio todo.”

 

Amputações

Uma crónica onde a autora parte do filme 127 horas para escrever sobre as amputações que vamos sofrendo ao longo da vida, sobre tudo aquilo que escolhemos deixar para trás porque já não nos serve mais.

“Sim, estamos falando de amores paralisantes, mas também de profissões que não deram retorno, de laços familiares que tivemos de romper, de raízes que resolvemos abandonar, cidades que deixamos. De tudo que é nosso, mas que teve que deixar de ser, na marra, em troca da nossa sobrevivência emocional. (…) Se eu juntasse alguns transeuntes, aleatoriamente, duvido que encontrasse um que afirmasse: cheguei até aqui sem nenhuma amputação autoprovocada. Será? Talvez seja um sortudo. Mas é mais provável que tenha faltado coragem.

Às vezes o músculo está estendido, espichado, no limite: há um único nervo que nos mantém presos a algo que não nos serve mais, porém ainda nos pertence. Fazer o talho machuca. Dói de dar vertigem, de fazer desmaiar. E dói ainda mais porque se sabe que é irreversível. A partir dali, a vida recomeçará com uma ausência.”

 

Medo de errar

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Provavelmente a minha crónica preferida em todo o livro. A autora escrever sobre como o medo de errar pode ser paralisante, deixando-nos num limbo permanente em que preferimos não nos mexer para não errar.

“Só nos tornamos adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e depois conviver em paz com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte. Adultos sabem que nunca terão certeza de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos."