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Livros, viagens e tudo o que nos acrescenta

Guarujá (Brasil) em 17 fotografias

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No Guarujá, litoral do estado de São Paulo, a cerca de duas horas do centro da cidade, não se vai a lado nenhum sem carro (ou ônibus). Olho pela janela e observo as ruas e as lojas que definitivamente não podiam ser portuguesas. As montras pobres, o ar meio desleixado, meio decadente que agora reconheço como o jeito brasileiro de fazer o melhor com pouco. Pelo menos aqui, quase no meio do nada, longe das grandes cidades e das ruas turísticas. Vejo o Perequê ao fundo, a praia cheia de barquinhos de pesca, onde uns miúdos se atiram ao mar poluído de uma ponte de madeira. Os cães na rua pedem festas a toda a gente que passa. Vou ao supermercado e há rapazes adolescentes que ganham uns poucos reais a guardar as mercadorias das pessoas em sacos. Viro a cara envergonhada. Ainda não me habituei. Olho os muros altos com arame farpado e as grades nas janelas das moradias com estranheza. Mais de um mês aqui e a única coisa que aprendi foi que não sei nada do Brasil.

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A praia do Perequê, que tem vários avisos de que a água é imprópria para mergulhos, mas que está sempre cheia.

Quando resolvi fazer um estágio de dois meses num lugar longe de tudo, mas algures no Guarujá, sabia que estava a lidar com o desconhecido. O desconhecido dá medo. E atrevo-me a dizer que só quando nos acostumamos e criamos rotinas é que conseguimos gostar e aproveitar. Foi assim com o Brasil. Não foi amor à primeira vista, mas aconteceu. Habituei-me a viver quase no meio do nada, numa casa de madeira suspensa num canal de água salgada. E agora não imagino outro cenário para estes dois meses. Gosto que me chamem de portuguesinha e que me perguntem todos os dias sobre Portugal, os portugueses e as diferenças na língua (a mesma mas tão diferente). Gosto que se oiça música em todo o lado, da comida cheia de tempero, da calabresa no pão, da tapioca na praia e dos pães de queijo a meio da manhã. Gosto do jeito desapegado de quem ajuda só porque sim e responde “magina” (a expressão mais bonitinha de sempre) ao obrigado. Gosto do calor tropical e da chuva que refresca o ar.

 

A casa flutuante

Viver na casa flutuante é dormir com muito calor e muitos mosquitos. Acordar, tomar o café da manhã na varanda, a olhar as montanhas no horizonte e pensar que afinal não passa nada. É ver uma garça branca a dormir no barco salva-vidas e um savacu pousado na corda. É chegar a casa depois de um longo dia de trabalho, confirmar se não há águas vivas algures e pular na água fresca do mangue. Nadar no pôr-do-sol, tomar um banho gelado e jantar entre as conversas e os abalos da casa sempre que passa uma lancha ou um iate. É ver passar os pescadores todas as noites e aproveitar o peixe que nos oferecem de vez em quando.

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 A casa flutuante, com as montanhas ao fundo.

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Pescadores no mangue.

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Um urubu na casa flutuante (à direita). É uma ave necrófaga, que se alimenta de animais mortos. Com o urubu no telhado, as andorinhas que lá têm ninhos só ocupam os cantos.

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O final do dia é sempre diferente e bonito demais.

 

A prainha branca

Descobri no Brasil que tenho medo de trovoada. Li há uns anos o livro “Marley e eu” de John Grogan. O livro conta a vida do cão de John - Marley - um labrador enorme. A certa altura descobrimos que Marley entra em pânico sempre que há trovoada, chegando ao ponto de estragar as portas e paredes de casa. John não compreende este medo. Certo dia, um raio bate tão próximo de si que quase o atinge e John, não só percebe que o medo de Marley não é infundado, como passa a temer as trovoadas.

Na verdade, o meu problema não é a trovoada, mas sim a trovoada que faz aqui. Troveja muito. O termo correto são tempestades elétricas e nunca me fez tanto sentido. Faz sol, depois o céu muda rapidamente, as nuvens tornam-se escuras e começa a chover muito. Seguem-se os trovões, normalmente muitos e muito perto. A madeira da casa flutuante range e eu espero ansiosa que passe. Uma voluntária que também não gosta de trovoada vai repetindo (não sei se para mim, se para ela própria) que “Não passa nada, não passa nada”.

 ***

Acordo tarde na minha primeira folga. Decido ir com outra voluntária para a prainha branca. Olho pela janela da cozinha e vejo nuvens negras acima das montanhas. Decido ignorar o aviso. “Pode ser que não cheguem aqui”, penso.

(Isto foi um erro.)

É uma viagem curta de autocarro até ao início do trilho da prainha branca. O trilho é composto por subidas e descidas íngremes e em terra batida, envolvidas pela vegetação da Mata Atlântida. Ficamos cansadas e paramos um pouco para respirar fundo. Ao nosso lado, uma mulher (muito) grávida pára também. “Já estamos quase a chegar” diz. A minha amiga pergunta: “A senhora vive por lá?”. A prainha branca tem uma pequena vila de moradores, com pousadas e locais de campismo. “Sim, faço este percurso todos os dias para ir trabalhar” responde. Penso que se esta mulher entrar em trabalho de parto em casa terá de fazer meia-hora de trilho a pé para chegar à estrada.

Chegamos à prainha branca ao mesmo tempo que as nuvens negras. Mais um vez, ignoramos o aviso. Percorremos o areal à procura do melhor sítio para mergulhar. Pousamos as coisas e molhamos os pés na água fria. Começa a chover. “Não passa nada” dizemos. Mergulhamos. Ouvimos um trovão. O nadador salvador (aqui diz-se guarda vidas) apita e mexe os braços freneticamente para as pessoas saírem da água rapidamente. Cedemos e decidimos esperar que a tempestade passe num pequeno restaurante. Não passa. Fazemos o trilho de volta debaixo de chuva e alguma trovoada.

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 A foto possível da prainha branca, no meio de chuva e trovoada.

 

O mar casado

Na minha segunda folga faz sol. Vou conhecer a praia do mar casado que se torna no meu sítio preferido em dois meses de Brasil. Fica ao lado da praia do Pernambuco e tem este nome porque durante a maré alta, as águas das duas praias se juntam e formam uma só praia com uma ilha. Quando a maré baixa, as águas separam-se.

Aproveito as folgas e os finais de tarde de sol para mergulhar no mar, às vezes morno, outras gelado. Como tapioca atrás de tapioca. Deito-me no areal e vejo as fragatas e os urubus a sobrevoar a ilha. Penso na sorte que tenho em estar aqui.

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 A praia do mar casado na maré baixa. Quando a maré sobe, o areal desaparece e esta zona torna-se uma ilha.

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 A calma da praia do mar casado em dia de semana.

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 Fragatas a voar na praia. São duas fêmeas, de peito branco, e um macho, de peito negro. E fazem lembrar o batman.

 

Iporanga

Iporanga

A praia do Iporanga tem um conceito estranho para mim. Fica dentro de um condomínio, com umas poucas centenas de casas de luxo (mansões é a palavra certa). O acesso é permitido a todos, mas o número de visitantes por dia é controlado por um número limitado de lugares de estacionamento por questões ambientais. Desde a entrada do condomínio até à praia, há um longo percurso de Mata Atlântida cheia de vida selvagem. A praia é enorme, limpa e tem uma cascata (ou cachoeira como se diz por aqui).

Vou ao Iporanga sempre pelas melhores razões. Passei estes dois meses a fazer um estágio de reabilitação de animais marinhos e é, por norma, nesta praia que os devolvemos ao mar. Sejam gaivotas resgatadas por intoxicação com lixo ou tartarugas marinhas tratadas por terem ingerido plástico (tampas, linhas de pesca, pequenos plásticos que embrulham quase tudo aquilo que consumimos) é nesta praia que voltam a ser livres. É aqui que abrimos as caixas de transporte ou que pousamos as tartarugas no areal e esperamos que tenham uma vida longa e sem mais incidentes.

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Gaivota adulta (cinzenta e branca) e juvenil (castanha e branca) na praia do Iporanga. A juvenil tinha sido solta e estava a voar pela primeira vez após o tratamento.

Vou ter saudades de tudo. A primeira vez não se repete. Posso (e quero) voltar ao Brasil mas nunca estarei aqui de novo pela primeira vez. Nos últimos dias tento guardar tudo: o silêncio do mangue quebrado pelos barcos que passam de vez em quando e abanam a casa, os guarás cor-de-rosa que pontuam a paisagem mas nunca se deixam fotografar, as centenas de estrelas que ocupam o céu quando as luzes se apagam, a sensação de pular na água fresca do mangue depois de um dia de trabalho, o sabor estranho do açaí. Creio que até dos duches de água gelada e das tempestades vou ter saudades. Se há coisa que aprendi por aqui é que uma pessoa se habitua a quase tudo. Às tantas, já nem queremos de outra forma.

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